quarta-feira, 28 de abril de 2010

seguindo a estrada dos tijolos amarelos.

Vivemos em uma cultura grafocêntrica que torna oficial apenas aquilo que está registrado, apesar de que mesmo as coisas escritas às vezes precisam ser confirmadas com falas repetidas...

Por exemplo, vôos domésticos; as instruções de segurança que são encenadas pelos comissários de bordo estão todas desenhadinhas e descritas em cartões de papelão atrás dos assentos, mas sempre são repetidas e ainda fazem questão de dizer no final “cartões com informações de segurança encontram-se nas bolsas a sua frente...” Estou ouvindo bastante essas instruções ultimamente... e toda vez que sento leio “use seat bottom cushion for flotation” e fico imaginando o avião caindo na água e eu tentando desprender a parte de baixo do assento pra usar de boinha... É toda uma questão teatral, tem o roteiro, as falas, as encenações, o cenário e o figurino (lógico!) Dizem que o curso de comissário(a) é difícil, mas só consigo pensar num curso de maquiagem e mímica. Será mesmo que existe uma avaliação pra repetir aquelas frases prontas das instruções, com aquele inglês típico “lê como se escreve”? Essa "Era da tecnicidade"... tem que ter diploma pra tudo, até pra fazer “ceninha”.

O pior é saber que essas coisas são necessárias, e existem pessoas despreparadas pra lidar com coisas básicas. Tá certo que o que parece básico pra mim, pode não ser básico pra outra pessoa, porque a vivência dela é diferente da minha e ela pode nunca ter precisado de determinadas informações (como as instruções de vôo), mas aí me deparo com a minha situação (que é a de inúmeras pessoas) quando se está num hospital, o mínimo que se espera é que as pessoas que dão informações saibam lidar com pessoas, saibam dar as informações! Não, doce ilusão... É por termos o hábito de perguntar, que as informações escritas não são suficientes, percebe-se que as orientações são mal-formuladas e “quem não se comunica....” se perde mesmo. Se alguma informação quer ser transmitida de maneira eficiente, deve-se SEMPRE pensar em como o outro receberia aquela mensagem, primeiro de tudo pensar “quem é o outro?” É lógico que não somos analistas, ninguém tem poder de ler pensamento ou coisa parecida, pelo menos eu não tenho, mas não precisa ser um gênio pra conseguir se comunicar, aliás, acho até que gênios devem ter até um pouquinho mais de dificuldade... o ponto é: adaptar a maneira como as coisas são ditas para serem compreendidas facilmente e não só isso, serem também “absorvidas”, que as pessoas leiam determinada informação e que aquilo fique claro e ela consiga agir por si mesma, que não precise perguntar nada a ninguém...

Exemplificando... a primeira vez que vim pra cá, entramos no Prédio dos Ambulatórios, tinhamos que encontrar um elevador e ir até o sétimo andar, ok, simples... mas não! Existem vários elevadores e cada um pára em determinados andares, isso não está escrito em lugar nenhum, ouvimos alguém dando essa informação pra um outro alguém, agora mais um impasse qual elevador pegar? Paramos pra perguntar “siga a faixa verde e amarela”, Não tinha faixa verde e amarela, só tinha faixa amarela, “deve ser essa”, chega até o final da faixa amarela, nada, pergunta pra mais alguém, “ah, vai até o final do corredor que vai começar a faixa verde e amarela”, ou seja, primeiro era só amarela e chegar até a verde e amarela implicaria primeiro passar somente pela amarela, informação corrompida, me senti a Dorothy do Mágico de Oz... Enfim, encontramos, mas somente porque perguntamos, pois as informações (plaquinhas, faixas e etc) não eram suficientes, num lugar imenso desse, seria plausível que informações de localização básicas fossem mais claras. O ditado “quem tem boca vai à Roma”, inicialmente era “quem tem boca vaia Roma”, nessas horas penso em como explicar essa transformação... (acho que tô viajando, mas faz sentido!) Então, somente quando você tem discernimento de como as coisas deveriam ser, você consegue chegar em algum lugar, metendo a boca no trombone.

Orientações são boas se forem simples, completas e práticas... Mais um exemplo... Vim pra cá com a minha mãe, ficaram três homens em casa, ah! e mais um gato, não posso esquecer dele. Em condições normais de temperatura e pressão, homem já é desprendido de tarefas domésticas, imaginem sozinhos e com um gato, então imaginem as condições de um apartamento nessa situação em 20 dias. Precisei tomar providências preventivas, fiz uma lista de orientações básicas, sempre pensando em pra quem eu faria, ou seja, a escolha das palavras e dos exemplos tem que fazer sentido pra eles... eis a lista:

Dicas e Regras básicas para manter a casa organizada e habitável!

- É expressamente proibida a entrada de ANIMAIS no quarto da Rafaella.

- Manter as portas fechadas para o Abreu [o gato] não demarcar território.

- Checar as caixas do gato (de areia e de comida), para ter certeza de que ele não se confundiu. Mantê-las limpas para que ele não use a SUA CAMA como banheiro.

- Não deixar toalhas acumulando no cesto de roupas, pois em pouco tempo todas ficarão pretas!

- Verificar se o nível da água (+ sabão em pó e amaciante) está compatível com a quantidade de roupas na máquina (antes de lavar!)

- A limpeza do banheiro implica: (não jogar papel no vaso sanitário!) dar descarga até desaparecerem os fluidos; deixar os azulejos e o piso do Box livre de larvas e mofo; varrer o chão e passar pano (e LAVAR os panos logo após o uso!)

- LAVAR os copos logo após o uso. Pois, caso contrário, em pouco tempo todos os copos do mundo estarão na pia e você terá que tomar água fazendo conchinha com a mão.

- Abrir o congelador de vez em quando, para não deixar um urso polar se criar lá dentro.

- Dar uma geral na geladeira, pelo menos, uma vez na semana. Comida guardada muito tempo fica verde, cria pêlo e dá medo!

- Tirar e LEVAR o lixo TODOS os dias (mais de uma vez por dia se estiver transbordando ou fedendo!)

- Quando algum produto estiver acabando anote para comprar ANTES que acabe. Pois você pode acabar tendo que usar a mão como papel higiênico, por exemplo.

- Computador, videogame e CIA LTDA não são carentes! Podem esperar você fazer suas tarefas PRIMORDIAIS e não vão ficar depressivos...

- Passar aspirador e tirar o pó, pelo menos três vezes na semana, ou, a qualquer momento em que se perceba que os móveis e o chão, na realidade, NÃO são de veludo.

- Não faça armadilhas nos armários! Arrume de maneira que as coisas não se joguem em cima do primeiro sortudo que abrir a porta.

- Cada coisa tem o seu lugar, preste atenção no seu local de origem e coloque-a novamente no MESMO lugar a qual pertence, após ser usada!

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Fui clara? Não exatamente. Mas pra quem eu escrevi, sei que me fiz entender. Num primeiro momento deram risadas, fizeram piada, mas pelo menos eles pegaram a essência da coisa e sabem o que deve ser feito, não que tenham seguido tudo lindamente, mas agora têm consciência do que fazer (simplesmente porque está registrado!). E sei ainda que entenderam todos os “duplos-sentidos” implícitos...

Não que eu seja a “senhora informada” (talvez muito pelo contrário... hahaha), mas sei que um pouquinho de senso todos têm, só falta colocar pra funcionar...

A doença mais comum entre as pessoas é a dificuldade de serem autônomas; o pior é que ninguém pode ser curado completamente disso...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

filme trash de sessão da tarde.

Um hospital é um grande palco de uma tragicomédia. Isso não é paradoxal, uma vez que as comédias eram feitas a partir de grandes tragédias, porém, uma mudança básica era a caracterização dos personagens. Tento não ser maldosa nas minhas observações, mas há momentos que uma pontinha de humor, talvez inadequado, nos rodeia e não tem como escapar...
Começarei pelo tema “inclusão social”. Dia da Ressonância da minha linda cabecinha. Dia de passear pelo hospital com aquele lindo pijaminha azul, parecendo uma presidiária. Desço até algum andar misterioso, acompanhada da enfermeira da endocrinologia. A enfermeira que me acompanhava voltou para o sétimo andar e lá fico eu esperando ser furada para o acesso da agulha do contraste (líquido pra ver melhor as imagens da ressonância). Outra enfermeira tenta meu braço esquerdo, só enfiar a agulha e eu “é normal esse enjôo? tá doendo.” e a enfermeira “tens certeza que não estás grávida?” uma pergunta totalmente desnecessária, principalmente porque na hora meu braço ficou roxo e qualquer ser normal teria notado que ela errou minha veia e que estava inchando sem ter injetado nada, depois que seria ridículo passar mal só porque colocou a agulha, grávidas também não tiram sangue pra fazer exames? Comecei a ver tudo branco e não conseguia ficar sentada na cadeira, mais uma enfermeira veio e tirou a agulha, pedi pra tentar a veia na mão, ok, conseguiu, mas mesmo assim ficou roxo (e ainda estou com a marca!). Aí me deitam na maca porque eu já estava meio tonta, sendo que era pra ser um exame extremamente tranqüilo, claro, tirando da mente a ideia de que você ficará durante uma hora e meia fechada num tubo que parece um caixão, sem poder se mexer e ouvindo um baita barulhão “tu tu tu tu tu tu tu tu, tá tá tá tá tá, piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, péééééééé (...)” e também sem contar com o detalhe de que sou claustrofóbica (e neurótica, principalmente!). Mas como eu estava apenas na primeira semana do meu curso de paciência, então nada de pensar muito, é só abstrair, fechar os olhos e não abrir durante o exame todo; a sala parece um frigorifico, colocam um esparadrapo na sua cabeça para não mexer de jeito nenhum, jogam um cobertorzinho e dão uma campainha pra você apertar “caso aconteça alguma coisa, nós paramos o exame” frasezinha assustadora, mas é só pra fazer ceninha. Depois de toda aquela eternidade de olhos fechados, passando frio e quase ficando surda, acabou. O ouvido sai zumbindo, mas está tudo bem. Aí novamente espera a enfermeira vir te buscar pra voltar pro sétimo andar (mais um exercício de paciência, 30 minutos esperando caladinha...), chegou, vamos para o elevador, um caminho diferente de antes, dessa vez um corredor mais estreito e silencioso, só para funcionários, um elevador antigo, primeira porta aberta manualmente, depois uma grade, todo de madeira por dentro, uma voz do além “qual andar?” não vi nada... olhei pra baixo... Uma anã pilotando o elevador! Um elevador de madeira à manivela!
Pensem em um filme trash de terror, foi exatamente como me senti! Pior mesmo foi segurar o riso, mas sabe como é, tudo a gente supera...
Próximo exame, dia da tomografia, agora é a hora da “prova do curso de paciência”. Acorda cedo, toma banho, come uma maçã, vem a enfermeira “vão te chamar pra tomografia, tens que ficar de jejum a partir do café” ok, é só a partir do café então não tem problema, desço as 7h pro exame, lá vem perguntinhas de alergia e sei lá o que “sim, já fiz uma tomografia, mas fiquei com manchas roxas no rosto e o médico preferiu fazer sem contraste porque poderia ser alergia e minha mãe já teve choque anafilático (ficou sem respirar) numa crise alérgica e concordou por precaução.” Aí pronto, mais uma espera, porque dessa vez teria que ser com contraste, então, liga pra médica pra saber o que fazer “ah, ela não chegou ainda, mas já peço pra ligarem pra radiologia” Nessa espera da ligação, fica a Rafaella sentadinha esperando e aquele entra e sai de pessoas de todos os lugares... Imagens: uma moça com duas bolsinhas transparentes penduradas num cinto, uma com um líquido amarelo e outra um líquido marrom, ui! aí ela me pergunta “por que estás aqui? cê não parece doente”, deu pra sacar que era uma comparação... ainda bem que não pareço! Percebe-se, nessas horas, que nós julgamos os outros a partir do nosso olhar, da nossa situação mesmo; um velhinho de havaianas com unhas compridíssimas e pretas! ganhava do Zé do caixão fácil fácil, esperava também há bastante tempo, subiu sem fazer o exame porque tinha comido uma maçã e tinha que estar de jejum, comecei a apavorar “putz, tô há esse tempo todo aqui esperando, nem vou falar que também comi, não vou subir pra descer depois, ah! mas será que dá alguma coisa? bom, mas já passou 4h mesmo, acho que não tem problema”; de repente chegam enfermeiros da emergência com alguém na maca, mas só vejo os pés e ouço a discussão “não podemos fazer com ele assim desorientado, somente se estiver sedado” buscam sedativo, aplicam e viram a maca, uma caveira com dentes podres e babando começa a olhar pra mim! e nada de ligação, a enfermeira da radiologia liga novamente pra endocrinologia “ah! não avisaram nada que ela estava aqui? bom, mas e a médica está aí agora?” Nada, espera mais um pouco, os médicos da radiologia vem conversar comigo “bom, o procedimento padrão é aplicar um antialérgico, podemos te dar um medicamento corticosteróide e...” Mas corticóide!? É investigação de cushing! Pra que mais? Eu tenho cortisol sobrando... “ah, é mesmo, temos que esperar sua médica ligar então” E se eu não os lembro desse “pequeno” detalhe? Ok, passou... Das 7h às 11h30 lá estou eu em silêncio, a enfermeira passa novamente e pergunta “mas você não fez ainda?”; “não, tô esperando ligarem...” aí a médica liga e diz pra fazer sem contraste. Faço o exame, 10 minutos. Saio do exame e “por que tinha que ficar de jejum?”, “ah, é só por causa do contraste”, “hum, então eu nem precisava?”, “é.” Ufa! Em parte revoltada por estar morrendo de fome, em parte aliviada porque tinha comido uma maçã furtivamente e estava livre de ter qualquer reação e ter ficado em silêncio. Aí espera de novo alguém vir buscar, mais uma hora... “ainda não subisse? ninguém veio te buscar?”, “não...”, “mas eu já chamei, nossa te esqueceram aqui hoje, heim”, “é, e dizem que eu não tenho paciência”, “nossa, então hoje foi pra te testar mesmo!” Viva! Mais pontos para chegar perto do diploma.
Exame sérico de dosagem de hormônio com estímulo de DDVAP. Primeira vez na “Sala de testes, número 13”. Dessa vez o tema é “Fenótipos e estereótipos”. Senta na cadeirinha do lado de um menino que aparentava ter 10 anos, o braço parecia um graveto, enfermeira custou pra conseguir tirar sangue, mas tava indo, o pai do menino sentado esperando, um moço negro (inclusive com um corte de cabelo igual parecendo que o menino era seu clone), e do lado dele um senhor bem velhinho, de bengala, que estava esperando a mulher dele, que era uma senhorinha bem velhinha também (ambos brancos); aí o menino passa mal e a enfermeira diz pra médica responsável na sala “chama o pai dele que tá ali sentado esperando”, a médica levanta e olha pros dois homens sentados e pergunta “qual dos dois é o pai dele?” Nossa, mesmo a pessoa mais desprendida de estereótipos veria que não é questão de educação, é só constatar fenotipicamente que só podia ser um dos dois! Dava pra ver nos olhos do pai da criança aquele sentimento de vergonha alheia, todos que estavam na sala se olharam e eu só conseguia imaginar os pensamentos “Ela só pode estar brincando...” Aí chega a minha vez, acham minha veia tranquilamente, tiram sangue, deixa o acesso, daqui a 15 minutos aplica o medicamento, colhe o sangue novamente, espera mais 15 minutos, colhe de novo, depois mais 15, colhe de novo, e de novo e de novo e de novo... uma hora e meia fazendo isso e retorna pro quarto... Chega lá “Rafa, tivemos que te trocar de quarto porque o outro estava de reforma aí o quarto que você estava virou quarto de homem”, “Ah... que maravilha...”, Entro no quarto pra pegar minhas coisas, uma convenção de médicos e alunos ouvindo as historinhas dos pacientes homens, ouço um trecho de uma das narrações “é, antes da cirurgia da hipófise eu calçava 50, aí depois de tirar o tumor comecei a calçar 48...” Uau! Hipófise também, ui, que ervilhinha poderosa, heim... Bom, fui pro outro quarto, dessa vez dividido com mais 6 pessoas! Mas lá vamos nós para mais uma provação...
Segunda vez na sala de testes, dessa vez outro paciente foi junto, de outro quarto... Um “menino” de 225cm! Hospital de anões e gigantes... Muito simpático o moço, fomos conversando pelo caminho e ele bateu a cabeça num espelho quando saiu do elevador por que estava falando comigo e não viu, já não falo muito, mas aí mesmo resolvi ficar quieta. Chegamos na sala aquela coisa de furo aqui, pega veia ali, aplica medicação e etc e aquele moço enorme começa a passar mal numa cadeirinha minúscula, as enfermeiras ficam apavoradas, mas logo passa e ele já está conversando comigo de novo. TV ligada pra passar o tempo por que não se pode dormir, algum cantor sertanejo num comercial e o pequeno grande moço comenta “ah, eu gosto de bastante música, mas sertanejo me acalma, sabe...”, e eu “Ah, eu não gosto de sertanejo não, sou um pouco chata (modesta) com essas coisas” e ele “gosta de rock né? quando te vi lá no corredor eu logo pensei que gostavas de rock”, ; “é, isso, mas por que logo pensou?”; “mas não gostas desse rock de agora desses meninos que usam calça apertada? não tens cara que gosta disso, tens cara que gosta daquelas coisas mais pesada, heavy metal?” Bom, ele não me respondeu porque logo pensou isso, não sei como meus trajes, de pijaminha azul do hospital, denunciaram isso, mas, como diria meu irmão mais novo, me senti “lisonjeada pelo elogio regozijante (sem regurgitar!)”...
Então... Constato que de todas as situações podem-se arrancar sorrisos...
Mesmo em meio a um circo de horrores (?), ainda há momentos em que sua autoestima é uma boa companheira.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

fora do corpo (ou, a princesa e a ervilha).

Fluxo de consciência não tem ordem cronológica, vou e volto no tempo e no espaço, jogo palavras ao relento, é bom, é terapêutico. Já falei que não gosto de livros de autoajuda, mas cada vez que escrevo me sinto quase como um Paulo Coelho, isso é tão deprimente (se fosse pra ganhar o rico dinheirinho dele acho que eu ficaria bem alegre), enfim...

Nessa história de ir e voltar, nunca viajei tanto como nesses últimos meses (tanto no sentido literal como no figurado). Por exemplo, estou na minha casa agora. Sinto a melhor sensação do universo e ao mesmo tempo sinto que não estou aqui, porque minha mente ainda está no HC, não por completo, mas uma parte significativa. Como diz minha mãe, “pode ser ectópico, fora do corpo!” – já desenvolvo isso melhor - Ainda bem que a parte da mente que não tá comigo agora é a parte doente. Fui liberada por bom comportamento...

Então, vamos à lá Jack (estripador), por partes... Eu estou bem, (apesar dos pesares) ótima, na verdade. É uma questão de como a gente encara a doença. Como já comentei, a problemática maior do cushing (no meu caso) é encontrar a fonte de produção desse cortisol/ACTH desregulado. Começa por aí, a nomenclatura. Essa tal fonte de produção, pode ser “oh! meu deus! um tumor!” ou sejamos menos dramáticos e podemos dizer que a fonte é um adenoma. Se for medido o nível de preocupação de alguém que recebe a notícia de um tumor, e comparado a de alguém que recebe a de um adenoma (que é a meeesmíssima coisa) com certeza vai notar uma diferença significativa em relação às reações. Talvez por isso os médicos prefiram usar linguagem técnica – por não saber lidar com emoções a flor da pele dos pacientes, nós, leigos – Acho que funciona um pouco, mesmo eu sendo uma pessoa esclarecida, sabendo que os dois termos se referem à mesma coisa; prefiro usar o termo “adenoma”, “tumor” assusta muito.

Segunda coisa, a localização. Essa produção está acontecendo em algum lugar, normalmente acontece em uma glândula que por algum motivo desconhecido ficou enlouquecida e saiu espalhando cortisol por todo meu corpitcho. As glândulas responsáveis pela produção desse hormônio são as supra-renais que são controladas pela hipófise, que se localizam, respectivamente, acima dos rins e no cérebro, porém, contudo, todavia... por algum outro motivo não identificado essa produção pode acontecer em algum outro órgão qualquer (não tão qualquer assim, mas vamos generalizar) e essa seria a “produção ectópica” – Do gr. éktopos, ‘que está fora de lugar’. Ok, não explicou muito, pode ser em qualquer lugar, então? Não é bem assim, mas resumindo a novela é localizar pra retirar. Viva o relativismo.

Isso me lembra um conto do Andersen, a “Princesa e a ervilha”, quase me sinto fazendo parte da nobreza. Uma glândula minúscula do tamanho de uma ervilha (no meu caso, menor ainda) que altera uma pá de coisas na minha vida.

Nessa busca pela ervilha estragada, eu fiz trocentos exames laboratoriais e de imagem – cada dia de exame foi um episódio digno de ser contado com detalhes (depois...) – mas todos inconclusivos (ou os resultados demoram séculos), O último, que supostamente será o decisivo, foi marcado com um intervalo de duas semanas, ou seja, eu ficaria internada no hospital sem fazer absolutamente NADA durante duas semanas, surtando e chorando que nem criança pequena, sem poder ir no cinema, ou tomar café (decente), ou comer comida com sal, ou ver a luz do dia sem grade na frente, ou sem poder reclamar de andar nas calçadas esburacadas, sem rir das historinhas dos taxistas, sem um monte de coisas...

Esse exame decisivo é o cateterismo bilateral e simultâneo do seio petroso inferior, inicialmente eu achava que era uma coisa e soube que é outra, assustou um pouquinho mais, mas tudo bem. O que assustou? Não foi o nome, não. Foi a descrição do procedimento mesmo. Simplificando, agulhas mais grossas que o “normal” que serão colocadas em lugares não muito legais, ou seja, um catéter será colocado na minha virilha pra chegar a supra-renal e outro em alguma veia que consiga colher sangue do cérebro (?), para comparar os níveis do hormônio em cada local e saber se há diferença na dosagem e tchanan! lá estará o problema que será solucionado.

Por uma semana estou “ectopicamente” bem. Depois voltarei ao HC, pra ficar muito bem e voltar pro meu lugar.

É comum as pessoas recorrerem a seus deuses buscando respostas ou um milagre. Não procuro motivos por que eu tenho tal doença e não procuro uma cura milagrosa, pelo contrário. Só quero saber o que eu tenho e curar, não por um milagre, mas porque foi estudado e se tem uma solução, porque um milagre seria uma coisa única, excepcional, inexplicável. Quero que as soluções sejam explicadas, porque isso resulta em novas curas, o que me ajudou pode ajudar outras pessoas, mas o meu deus pode não ser o deus de outra pessoa e essas coisas acabam complicando o andamento da natureza, então prefiro não colocar essa responsabilidade em cima de algo inexplicável. Acho que pedir pra deus uma coisa dessas não é certo. Deve-se deixar cada um com seu ofício. O que eu penso de deus? Mais uma vez começa pela nomenclatura. Deus (com letra maiúscula) é uma entidade criada pra subsidiar problemas sem respostas e muitas vezes transforma algumas pessoas em fanáticos que não conseguem distinguir realidade e metáfora. Mas o meu deus (com letra minúscula) é outro tipo de subsidio, é mais do que isso, é algo inominável, é força, é alguma coisa que deve vir de mim mesma, mas que depende de tudo que está em minha volta. Eu não pediria pro meu pai fazer a minha cirurgia, por exemplo, só porque eu confio muito nele. Deixo isso pros médicos, mesmo sabendo que meu pai faria de tudo pra me deixar saudável, porque cada um faz o que lhe cabe e seria crueldade incumbir alguém (ou alguma coisa) de uma tarefa tão específica, é muita prepotência achar que nós podemos fazer isso (tirando chefia de trabalho, etc – mesmo assim ainda tem uns prepotentezinhos em demasia). Não é que aquele alguém seja incompetente, muito pelo contrário, aquele alguém é muito especial, mas de uma maneira peculiar. Acho que os que dão forças pra sermos autônomos, são os merecedores de nossa admiração, e é essa força que eu chamo de deus. Tenho vários deuses na minha vida.

Num dia no hospital, uma senhora companheira do meu quarto recebeu visita de um senhor muito religioso que estava contando causos pra tentar animá-la. Eis a história “estava viajando com a minha família de carro pra não sei onde e de repente o carro pára, Fulano abriu a tampa do motor, bateu com um cabo de vassoura, e nada... só saiu ferrugem, nem uma gotinha de gasolina! ‘é agora? vamos cantar os hinos da igreja! Deus vai nos ajudar!’ aí cantamos sem parar, e seguimos viagem! o fusca da família andou 90km só com o combustível da nossa fé! e quando ia passar a ponte? tinha caído! a gente continuou cantando os hinos e conseguimos! atravessamos o rio! irmã, é a mais pura verdade! tudo pode acontecer!” Eu e minha mãe estávamos nos segurando horrores pra não dar risada da seriedade daquele “relato”. Esse tipo de fanatismo que não concordo, mas por outro lado, aquela pessoa era um deus, porque estava tentando dar forças pra senhora (apesar da historinha hilária), o problema é que esse Deus do fanático não dá autonomia a ele, e pra mim a força e a forma de encarar as coisas devem partir de nós mesmos (sem querer parecer psicologia da autoajuda de novo, mas já parecendo). No filme da minha vida, eu sou a protagonista, a diretora e a produtora, mas os coadjuvantes não são só figurantes, são essenciais pra que eu tenha referência de que sou a principal, pois eu me constituo a partir do que eu não sou, tendo isso como referência, não sou o outro, mas preciso muito, infinitamente de outros...

domingo, 18 de abril de 2010

exílio da paciência.

Vários escritores consagrados têm prestígio por obras que escreveram no exílio.
Também pudera, nesse tempo internada o que mais me vêm são idéias de livros que eu poderia escrever, capítulos, artigos, teses, projetos e o escambal... Tudo é motivo de análise, as conversas dos outros pacientes, as histórias das vidas, os relacionamentos dos funcionários, dos pacientes, dos visitantes, a presença e ausência das pessoas, o silêncio, o choro, as risadas. É simplesmente impossível não ser um pouquinho filósofo nesses momentos de “repouso”. Escrever mesmo é o xis da questão. Eu, particularmente, repugno livros de auto-ajuda e constato que faculdade de psicologia não serve pra nada, o negócio é viver. Dentro do possível me acho uma pessoa equilibrada (muitas pessoas dariam risada dessa minha afirmação), mas ficar sozinha num lugar como esse é uma coisa assustadora, é bom ter com quem falar e ocupar a mente.
Um lugar estranho, com pessoas estranhas, e remédios e agulhas e sirenes e luzes e tudo isso girando com um turbilhão de pensamentos “mas eu tô bem, por que eu preciso ficar aqui?” em alguns minutos os pensamentos mudam “vou passar da endocrinologia pra psiquiatria, socorro!” mas pára, respira, coloca fone de ouvido, fecha os olhos e dorme. Acorda no outro dia com 2864375456736 mil médicos pra ver seu caso “olhem, olhem, já viram estrias desse tipo?”, “nossa! na canela nunca tinha visto” Os dias vão passando, as visitas se repetindo, vai se acostumando, entendendo... e aí você se sente útil! Todos aqueles alunos que passaram e te ouviram, no mínimo, sairão dali aptos a diagnosticar um caso como o meu. Esses médicos despreocupados que andam por aí deveriam ir pro país das Bruzundangas, onde os conceituados costumam dizer "você não tem nada". Logicamente, no mundo real, - se é que esse conceito existe - serão médicos competentes os que forem comprometidos com o seu trabalho e não deixar passar os sintomas - por mais generalizantes que sejam - vão pedir um simples exame de cortisol! A revolta, de não ter sido diagnosticada antes, foi passada só de ter sido contada. E os outros pacientes também percebem isso e por mais antissociais que sejam, acabam querendo contar alguma coisa, porque se sentem no direito de ter um bom tratamento e querem ser uteis pra um possível outro caso... até pedir meu DNA pra pesquisa já vieram, meu sangue já foi pra Espanha e tudo e eu aqui “cortISOLADA”...
Não sei o que eu seria sem todas as pessoas que me cativam e que são cativadas por mim, como diria a raposa do pequeno príncipe. Por mais “exilada” que eu esteja, a sensação é de estar ligada a todos ao mesmo tempo e a choradeira vem... E o choro nem é de tristeza é de felicidade, de ansiedade de querer sair e fazer mil coisas (escrever um livro, fazer um filme, tomar um café!) Um café... mesmo não tendo dieta restritiva, sou obrigada a comer comida do hospital (super bem temperada com toda a fama de comida de hospital!) Apesar dos pesares, o lugar é muito bom, as acomodações, os quartos, o serviço, tudo público. Passei por infinitos médicos particulares, consegui entrar aqui só por intermédio de uma consulta paga, mas aqui no hospital público é que os encaminhamentos são feitos, aqui as coisas andam, os médicos te reviram do avesso...

Nos primeiros dias eu esbanjando simpatia na minha crise de internação e as primeiras companhias de quarto quase tendo alta, cada um com sua cirurgia e sua recuperação e sua forma de encarar a situação, depois de uns dias juntas a fala começa a surgir e lá vem as confissões “quando vi vocês chegando pensei que eram super metidas, ficava aí quieta e nem falava com ninguém” mal sabem que eu não sou metida, sou só uma super chata mesmo, na verdade nem eu sei mais, porque eu tava me acostumando a ser chata, agora dizem que é culpa do cortisol! Mas em todo caso, acho que mudaram de opinião, concluí que o cortisol tem esse efeito sobre as pessoas, elas mudam... Por exemplo, quando chegou num estagio em que as pessoas da minha casa estavam desesperadas com as minhas inconstâncias (?) queriam que eu tomasse gotinhas de floral, eu já não sabia mais a que recorrer mesmo, mal aquilo não faria, tomei e... nada! A única coisa que serviu foi pra virar jargão de quando alguém tá irritado “e aí, já tomou a gotinha hoje?”, respostas de todos os níveis de educação podem surgir nesses momentos. Depois que descobrimos que o cortisol me provoca, todos se conformaram (não exatamente, mas quase isso).

Bom, na realidade vim pra cá para um Curso de Especialização em Paciência. Dizem que controlando o cortisol ficarei mais zen, olha só que maravilha! Por enquanto não tem nada controlado, mas estou no estágio, o tratamento é hard! Agüentar senhorinhas visitantes voluntárias é digno de pós-graduação! Algumas pessoas chegam numa certa idade e precisam muito se sentir uteis e de alguém pra conversar, mas não procuram psicólogos - porque todos que querem conversar, não querem médicos, é melhor pensar que conversam com pessoas que não estão sendo pagas pra ouvir o que tem a dizer – e pensam nos coitadinhos que estão no hospital precisando de uma visita. O problema é que os pacientes querem conversar sobre qualquer coisa, menos sobre o que essas senhorinhas voluntárias querem falar. Parece que em meia hora elas conseguem contar a desgraça de todas as pessoas que passaram pelo leito que você está, e se você der um sorrisinho, batata, abriu caminho para uma enciclopédia de doenças que ela teve ou que um conhecido teve (mas superou! ou então morreu, mas “pense que poderia ser pior, você está bem, sempre tem alguém pior!”)
Quem quer ficar ouvindo todo instante ‘’e, tens que ter paciência!”? Quem que conseguiu ficar paciente escutando isso? Não conheço. Não sei se é só pra quem tem cortisol alterado, mas são palavras mágicas, instantaneamente algo dentro de si vai crescendo e uma vontade de explodir (de se explodir, de explodir quem falou, ou de explodir qualquer coisa que tiver por perto) vai surgindo e você só pode sorrir e abstrair...

sexta-feira, 16 de abril de 2010

você não é você, você tem cushing.


Me dei o luxo de escrever na primeira pessoa, e de qualquer jeito... quer dizer, do meu jeito. Não vou me preocupar em fazer citações com referências, minhas narrações são de experiências vividas, adquiridas e absorvidas...

Não vou ser linear e nem tenho pretensão de esclarecer muita coisa, até porque escrevo em meio a uma confusão de pensamentos e observações em um lugar bem conturbado. Esse mundo paralelo de onde me enuncio é o Hospital das Clínicas de SP. Não corri atrás de coelho branco pra vir parar aqui, aliás, não é nem de perto um mundo de maravilhas, pelo menos, não no sentido tradicional atribuído à palavra.

Terça-feira de abril, aula sobre referência, uso de termos que podem ser atribuídos a uma mesma palavra para progressão no decorrer do texto. Discutia-se como uma flor pode virar lixo. Um telefonema e a notícia esperada há algum tempo “você será internada semana que vem”.
Hospital Escola, endocrinologia, aqui estou eu. Sempre fui de observar minuciosamente as coisas à minha volta, quando cheguei esse exercício começou a se aprimorar. Primeiras impressões “meu deus do céu, onde eu tô?!” Lugar imenso, muitas pessoas, muitos sotaques, muitas doenças! Quarto dividido com mais 3 pessoas, histórias diferentes, conversas diferentes e parece que existe uma necessidade coletiva de contar causos...

Tolerância nunca foi meu ponto forte, nem calma... Mas como ouvi dos médicos “a irritabilidade excessiva é sintoma da doença”, ou seja, eu não sou irritada, eu sou doente! “UAU! que divertido!”

Então, logo que eu cheguei já me avisaram que viriam alunos do curso de medicina fazer entrevistas com os pacientes. Aí você faz a conexão com o significado da palavra. Pra agüentar, é bom dar risada de tudo (não que eu não chore por tudo, muito pelo contrário!). Horário de visita somente das 15h às 17h, mamãe conseguiu autorização pra ficar desde as 12h comigo “graças a deus! ou melhor, graças à enfermeira-chefe!”


Primeiro dia, 6h da manhã “vamos levantar pra se pesar!” Sim, eu sei que isso não é hotel e que as coisas têm seus horários, mas esperar mais uma horinha vai mudar tanto o meu peso? “Ok, peso e volto a dormir” 7h da manhã, alunos do quarto ano “Bom dia!” pensamentos ao acordar “pqp, não deu tempo nem de escovar os dentes” mas lá vamos nós para a primeira entrevista... “Você pode nos contar como chegou aqui?” primeiro pensamento “Atos ilocutivos? É, Acho que não é uma pergunta retórica... melhor não dizer que vim de avião.”

Como é a primeira vez então vamos para a versão não resumida da historinha...


Há três/quatro anos atrás, eu pesava 48kg e começaram a aparecer estrias na horizontal, na minha canela. Procurei, então, um angiologista, pois aquilo não pareciam estrias normais, “dói? não? é, isso são estrias, o tratamento é estético, não é comigo”, procurei um dermatologista, dois dermatologistas, três dermatologistas “você é bem branca, sua pele é sensível, vou te receitar tratamento com ácido retinóico, que pode ser que em seis meses elas comecem a esmaecer” nada de surtir efeito, surgiam mais estrias e as outras não desapareciam, os anos foram passando e desisti do tratamento, uma vez que eu só gastava dinheiro, desencanei e “é, eu tenho estrias”. Sempre comi bem, o suficiente - a frase que eu mais ouvia “mas essa menina é magra de ruim” - e nesse meio tempo comecei a engordar com uma rapidez incrível, e mais estrias surgiam, procurei um endocrinologista “você tem que se gostar, não pode deixar a comida te dominar, faça exercícios e volte daqui a um mês que quero te ver no mínimo uns 5kg mais magra” Sim, isso é a fala de um profissional para alguém que foi a procura de ajuda porque supostamente não se gosta. Aí começam-se dietas, academia, contar calorias, emagrece um quilo, dois, três, não emagrece mais, engorda, vai pra academia, volta e se irrita com tudo e com todos, procura se ocupar cada vez mais, reclama que tenta emagrecer e não se reconhece mais no espelho, o rosto começa a ficar um balão “mas, Rafa, nunca vi alguém tão complexada com as bochechas quanto tu” e chora e se aceita e a academia começa a ser cansativa demais e academia parece que só faz efeito nas pernas, só as pernas emagrecem, então vamos para o Muay Thai porque afina os braços, hematomas horrendos com qualquer toquezinho começam a surgir e já nem se sabe se foi pelo esporte ou se estão surgindo sozinhos... mais um dermatologista, as mesmas perguntas “você toma alguma medicação com corticóide? ah, não? bom, então vou te recomendar um acido, você é muito sensível” e liga pra mãe “mãe, eu sou muito sensível!!! não existe vitamina, não me pediram exames, não tenho nada, eu tô ficando roxa!” Aí volta pra faculdade, pára de pensar nisso! Existem “maiores” preocupações, afinal, estética é futilidade. Eis que surge uma protuberância no pescoço “pronto, estou ficando corcunda, é muito tempo no computador” procura um ortopedista “é bom fazer exercícios, mantenha-se ereta e se você emagrecer vai ajudar” pronto, eu tenho que emagrecer, tenho a pele sensível e tenho que me controlar “normal, a Rafaella deve ter uma TPM prolongada” e o tempo vai passando e começo a ficar cansada de subir uma escada, e irritada, e cai cabelo e “é stress” procuro mais soluções e vou em outro médico e tomo remédio e não emagreço e “tá, desencana” chegaram as férias, vou viajar. Volto com hematomas “que isso, Rafa? fosse espancada?” Vou procurar um hematologista, um senhor, médico professor da UFSC, conversando e fazendo perguntas, “e o aumento de peso, há quanto tempo? tudo isso em 3 anos? hum... estrias na canela sem ter engordado? hum... giba no pescoço? hum... rosto em formato de lua cheia? hum... e o sono? acorda muito a noite? ah, é? hum... vou te pedir alguns exames e depois conversamos” Na requisição do exame de sangue, pedindo nível de cortisol, um ponto de interrogação: Cushing? Qualquer pessoa convicta de que precisa de respostas sabe fazer uma pesquisa e analisar informações relevantes. Google pra que te quero, na hora, search:
(sintetisando:)

CUSHING: alterações nos níveis de cortisol no organismo e do hormônio ACTH, que podem ser provocadas pelo uso contínuo de corticosteróides ou por um tumor (adrenal - ou hipofisário - ou ectópico = região dos rins – cérebro – alguma outra glândula não responsável pela produção desse hormônio que por ironia do destino começou a produzir) os principais sintomas aparentes são estrias violáceas (avermelhadas, com mais de um cm de espessura que surgem repentinamente mesmo sem ter engordado o suficiente para isso), aumento de peso em pouco tempo, principalmente na região do abdome, rosto com formato arredondado (face de lua cheia), giba (massa atrás do pescoço), mudanças de humor repentino com irritabilidade excessiva, perda de massa muscular nos membros inferiores, pele sem elasticidade; piores complicações: obesidade, diabetes mellitus, osteoporose precoce... (e mais algumas coisas mais assustadoras)


Resultado do exame de sangue: “seu cortisol está alterado” Tomografia do abdome: “negativo” Ressonância: “cistos na pineal”; pronto, mais um apavoro, “agora te encaminho pra um endocrinologista porque é especialidade dele e vão saber te esclarecer melhor... Lágrimas e mais lágrimas e lá fomos nós (eu e minha mãe, minha super companheira) encaminhadas de Florianópolis para São Paulo. Chegando em SP “pare de tomar o anticoncepcional e volte daqui um mês para ser internada e fazer os exames”

As frases mais ouvidas "mas como não diagnosticaram antes?", "você é a caricatura da doença!", "isso é coisa que qualquer quarta fase já tem conhecimento", "você que olhou no google já poderia diagnosticar alguém na rua", "mas como que te perguntavam se usava corticoide e nunca te pediram exame de cortisol?"

"ah, mas é uma doença rara" e daí? mesmo sendo rara já encontrei várias evidências de que não é desconhecida e nem é difícil de diagnosticar, os exames são básicos.
É revoltante saber que uma criatura estudou anos para se formar e ter seu consultório, aí chega numa altura do campeonato diz para seu querido paciente "acho bom você fechar a boquinha que funciona, porque você tem que se gostar". Isso sem ter pedido um exame sequer. Esse tipo de criatura continua sua vidinha tratando as pessoas como número e aumentando o número da sua continha bancária sem aumentar o número do peso na consciência. Caso típico de mediocridade, como diria meu pai.
As coisas que acontecem com o nosso organismo são consequências de inúmeras outras que eu, particularmente, nem imagino; mas se alguém perdeu seu precioso tempo estudando esses processos fisiológicos e atua profissionalmente para esclarecer outras pessoas que não tiveram esse estudo, no mínimo, espera-se que o que foi dado na faculdade seja verificado! Mas não, quase dez médicos só aprenderam a dizer "você é sensível". Agora faço alusão de um trecho de Hamlet "não precisa um fantasma levantar da sepultura para dizer o óbvio"... mas não sei se palavras comoveriam esses médicos por quem eu passei, pra motivá-los a ter um pouquinho mais de convicção no que fazem, principalmente porque lidar com pessoas todos sabemos que não é fácil, é clichê dizer isso, mas somos pessoas e não é fácil nem lidar consigo mesmo. Depois do diagnóstico a vontade é de sair gritando aos quatro ventos os nomes desses médicos, ou , fazer um artigo,
mandar uma carta, um pedido de socorro pra outros médicos, alertando para que não se faça descaso de ninguém, diagnósticos são coisas sérias.
Agora sei que tenho cushing e fica a grande questão "tenho estrias e não sou apenas sensível, fechei a boquinha e não emagreci
(além de muitas outras coisas) ... e você não me diagnosticou, vai fechar seu consultório?"

A problemática maior dessa investigação da doença, na verdade, é localizar o tumor pra poder fazer a cirurgia... mas isso são cenas do próximo capítulo...