quarta-feira, 21 de abril de 2010

fora do corpo (ou, a princesa e a ervilha).

Fluxo de consciência não tem ordem cronológica, vou e volto no tempo e no espaço, jogo palavras ao relento, é bom, é terapêutico. Já falei que não gosto de livros de autoajuda, mas cada vez que escrevo me sinto quase como um Paulo Coelho, isso é tão deprimente (se fosse pra ganhar o rico dinheirinho dele acho que eu ficaria bem alegre), enfim...

Nessa história de ir e voltar, nunca viajei tanto como nesses últimos meses (tanto no sentido literal como no figurado). Por exemplo, estou na minha casa agora. Sinto a melhor sensação do universo e ao mesmo tempo sinto que não estou aqui, porque minha mente ainda está no HC, não por completo, mas uma parte significativa. Como diz minha mãe, “pode ser ectópico, fora do corpo!” – já desenvolvo isso melhor - Ainda bem que a parte da mente que não tá comigo agora é a parte doente. Fui liberada por bom comportamento...

Então, vamos à lá Jack (estripador), por partes... Eu estou bem, (apesar dos pesares) ótima, na verdade. É uma questão de como a gente encara a doença. Como já comentei, a problemática maior do cushing (no meu caso) é encontrar a fonte de produção desse cortisol/ACTH desregulado. Começa por aí, a nomenclatura. Essa tal fonte de produção, pode ser “oh! meu deus! um tumor!” ou sejamos menos dramáticos e podemos dizer que a fonte é um adenoma. Se for medido o nível de preocupação de alguém que recebe a notícia de um tumor, e comparado a de alguém que recebe a de um adenoma (que é a meeesmíssima coisa) com certeza vai notar uma diferença significativa em relação às reações. Talvez por isso os médicos prefiram usar linguagem técnica – por não saber lidar com emoções a flor da pele dos pacientes, nós, leigos – Acho que funciona um pouco, mesmo eu sendo uma pessoa esclarecida, sabendo que os dois termos se referem à mesma coisa; prefiro usar o termo “adenoma”, “tumor” assusta muito.

Segunda coisa, a localização. Essa produção está acontecendo em algum lugar, normalmente acontece em uma glândula que por algum motivo desconhecido ficou enlouquecida e saiu espalhando cortisol por todo meu corpitcho. As glândulas responsáveis pela produção desse hormônio são as supra-renais que são controladas pela hipófise, que se localizam, respectivamente, acima dos rins e no cérebro, porém, contudo, todavia... por algum outro motivo não identificado essa produção pode acontecer em algum outro órgão qualquer (não tão qualquer assim, mas vamos generalizar) e essa seria a “produção ectópica” – Do gr. éktopos, ‘que está fora de lugar’. Ok, não explicou muito, pode ser em qualquer lugar, então? Não é bem assim, mas resumindo a novela é localizar pra retirar. Viva o relativismo.

Isso me lembra um conto do Andersen, a “Princesa e a ervilha”, quase me sinto fazendo parte da nobreza. Uma glândula minúscula do tamanho de uma ervilha (no meu caso, menor ainda) que altera uma pá de coisas na minha vida.

Nessa busca pela ervilha estragada, eu fiz trocentos exames laboratoriais e de imagem – cada dia de exame foi um episódio digno de ser contado com detalhes (depois...) – mas todos inconclusivos (ou os resultados demoram séculos), O último, que supostamente será o decisivo, foi marcado com um intervalo de duas semanas, ou seja, eu ficaria internada no hospital sem fazer absolutamente NADA durante duas semanas, surtando e chorando que nem criança pequena, sem poder ir no cinema, ou tomar café (decente), ou comer comida com sal, ou ver a luz do dia sem grade na frente, ou sem poder reclamar de andar nas calçadas esburacadas, sem rir das historinhas dos taxistas, sem um monte de coisas...

Esse exame decisivo é o cateterismo bilateral e simultâneo do seio petroso inferior, inicialmente eu achava que era uma coisa e soube que é outra, assustou um pouquinho mais, mas tudo bem. O que assustou? Não foi o nome, não. Foi a descrição do procedimento mesmo. Simplificando, agulhas mais grossas que o “normal” que serão colocadas em lugares não muito legais, ou seja, um catéter será colocado na minha virilha pra chegar a supra-renal e outro em alguma veia que consiga colher sangue do cérebro (?), para comparar os níveis do hormônio em cada local e saber se há diferença na dosagem e tchanan! lá estará o problema que será solucionado.

Por uma semana estou “ectopicamente” bem. Depois voltarei ao HC, pra ficar muito bem e voltar pro meu lugar.

É comum as pessoas recorrerem a seus deuses buscando respostas ou um milagre. Não procuro motivos por que eu tenho tal doença e não procuro uma cura milagrosa, pelo contrário. Só quero saber o que eu tenho e curar, não por um milagre, mas porque foi estudado e se tem uma solução, porque um milagre seria uma coisa única, excepcional, inexplicável. Quero que as soluções sejam explicadas, porque isso resulta em novas curas, o que me ajudou pode ajudar outras pessoas, mas o meu deus pode não ser o deus de outra pessoa e essas coisas acabam complicando o andamento da natureza, então prefiro não colocar essa responsabilidade em cima de algo inexplicável. Acho que pedir pra deus uma coisa dessas não é certo. Deve-se deixar cada um com seu ofício. O que eu penso de deus? Mais uma vez começa pela nomenclatura. Deus (com letra maiúscula) é uma entidade criada pra subsidiar problemas sem respostas e muitas vezes transforma algumas pessoas em fanáticos que não conseguem distinguir realidade e metáfora. Mas o meu deus (com letra minúscula) é outro tipo de subsidio, é mais do que isso, é algo inominável, é força, é alguma coisa que deve vir de mim mesma, mas que depende de tudo que está em minha volta. Eu não pediria pro meu pai fazer a minha cirurgia, por exemplo, só porque eu confio muito nele. Deixo isso pros médicos, mesmo sabendo que meu pai faria de tudo pra me deixar saudável, porque cada um faz o que lhe cabe e seria crueldade incumbir alguém (ou alguma coisa) de uma tarefa tão específica, é muita prepotência achar que nós podemos fazer isso (tirando chefia de trabalho, etc – mesmo assim ainda tem uns prepotentezinhos em demasia). Não é que aquele alguém seja incompetente, muito pelo contrário, aquele alguém é muito especial, mas de uma maneira peculiar. Acho que os que dão forças pra sermos autônomos, são os merecedores de nossa admiração, e é essa força que eu chamo de deus. Tenho vários deuses na minha vida.

Num dia no hospital, uma senhora companheira do meu quarto recebeu visita de um senhor muito religioso que estava contando causos pra tentar animá-la. Eis a história “estava viajando com a minha família de carro pra não sei onde e de repente o carro pára, Fulano abriu a tampa do motor, bateu com um cabo de vassoura, e nada... só saiu ferrugem, nem uma gotinha de gasolina! ‘é agora? vamos cantar os hinos da igreja! Deus vai nos ajudar!’ aí cantamos sem parar, e seguimos viagem! o fusca da família andou 90km só com o combustível da nossa fé! e quando ia passar a ponte? tinha caído! a gente continuou cantando os hinos e conseguimos! atravessamos o rio! irmã, é a mais pura verdade! tudo pode acontecer!” Eu e minha mãe estávamos nos segurando horrores pra não dar risada da seriedade daquele “relato”. Esse tipo de fanatismo que não concordo, mas por outro lado, aquela pessoa era um deus, porque estava tentando dar forças pra senhora (apesar da historinha hilária), o problema é que esse Deus do fanático não dá autonomia a ele, e pra mim a força e a forma de encarar as coisas devem partir de nós mesmos (sem querer parecer psicologia da autoajuda de novo, mas já parecendo). No filme da minha vida, eu sou a protagonista, a diretora e a produtora, mas os coadjuvantes não são só figurantes, são essenciais pra que eu tenha referência de que sou a principal, pois eu me constituo a partir do que eu não sou, tendo isso como referência, não sou o outro, mas preciso muito, infinitamente de outros...