sábado, 19 de junho de 2010

amigos da Lavínia

Da primeira vez que fiquei internada, os primeiros pensamentos que me vieram à cabeça eram “aimeudeus, vou sair daqui pra psiquiatria!” Adivinhem só onde estou nesse exato momento!? Pois é! Sim, na psiquiatria... Não é pior que a endocrinologia, tirando alguns detalhes da limpeza e das partes administrativas, o que em tese não era pra amedrontar, porque a princípio todos pensam que na psiquiatria só tem gente doida (pacientes), não, absolutamente. Acho que tirando eu, a maioria são pessoas lúcidas, mas estão aqui por problemas de comunicação, com seu próprio cérebro. São coisas complicadas, nosso organismo é muito complexo e eu acho isso alucinante! O problema daqui é que nem todos os quartos têm banheiro e os banheiros são mistos e a limpeza não é “aquelas coisas” e aí eu entendo porque várias pessoas vão tratar uma simples unha encravada e saem com uma infecção hospitalar... mas vou deixar os detalhes sórdidos para depois... Então, agora estou supostamente “descunshingada”, como diria uma amiga minha... Estou na reta final da novela, bem mais pra uma epopéia, na verdade.

Depois que voltei do cateterismo pra casa, esperei um mês e voltei para consulta, dessa vez meu irmão mais novo também foi, viagem dele de avião pela primeira vez, legal ver os olhinhos dele brilhando e não sentir apenas “estou indo para consulta médica”, parecia que o motivo da viagem não era eu, estava me sentindo secundária e não “a paciente”, nessas horas que percebemos os trocentos papéis em que atuamos... Por exemplo, eu fui tão insignificante nesse dia, que quando chegamos em SP, fui entrar no táxi e o motorista tocou o carro fechando a porta na minha cabeça e aí minha mãe gritou “pára, a minha filha não entrou ainda” olha, que agradável, essa foi a mensagem de “bem-vinda de volta”, percebi que o taxista ficou super sem graça, baixou minha pressão, mas tudo ficou bem. Como não precisei ficar internada, podíamos passear, porém, nada muito longe do hotel, porque eu tinha que fazer xixi no pote (pra variar!), ou seja, meu irmão conheceu o shopping. Mas era longe de casa então é tudo festa... até com o café da manhã se fazia piada... descemos de manhã cedo, cada um se serviu e quando ele foi tomar o suco que tinha pegado “ah, não vou tomar esse suco, porque (...)” e a mãe “que???” É, a besteira era tanta que a frase “não gosto dos gominhos da laranja” virou “não gosto dos amigos da Lavínia” mas enfim, no outro dia fui para a consulta saber do resultado do cateterismo, esperando respostas e etc... e... bom... o propósito do cateterismo era medir os níveis de hormônio de cada lado para saber onde a produção era maior e então localizar o tumor, chegando lá... “É, não deu muita diferença, então deve ser central” ÓÓÓÓÓH! O que isso quer dizer? Que o cateterismo só serviu pra confirmar novamente que eu tenho (ou tinha, seilá) cushing! mas não deu a localização exata, só com a cirurgia pra saber então... é! A notícia foi: seu nome está na lista de espera da cirurgia, pode ser que demore de dois a três meses, continue tomando cetoconazol, porque teu organismo está respondendo bem ao remédio que nós vamos te ligar pra avisar a data certa.

Voltei pra casa, tentei organizar a maioria dos meus trabalhos da faculdade, apresentação para a Semana de Letras, organização do Simpósio de Direito e Literatura, colocar leituras em dia, maior correria, semana apertada e eu torcendo para que me chamassem para cirurgia antes do próximo semestre, porque afinal, o próximo semestre é estágio e não poderei faltar... passaram-se duas semanas, terminou semana de Letras, terminou Simpósio, organizei metade dos trabalhos e... o telefone toca numa quinta-feira “Rafaella? Então, sua cirurgia está marcada para próxima quarta-feira, você tem que se internar no domingo” Perfeito! Super dentro dos meus planos. Semestre que vem meu estágio não estará comprometido! Correria pra comprar passagem, friozinho na barriga, dessa vez o pai veio junto também... Últimas palavras no aeroporto “quem/como será a Rafaella sem cushing?” Dessa vez, empresa aérea diferente das anteriores, não sei se era efeito da “anestesia” da notícia, mas pareceu um vôo mais tranqüilo... Chegamos, friozinho, tempo legal, fomos jantar num buffet de sopas... última vez com cushing, que eu sentia gosto...

Manhã seguinte: vou me internar. Chegando na psiquiatria, setor de neurocirurgias, encontramos o médico residente – enfatizando o sentido do termo “residente”, nunca vi igual, ele está a noite e o dia inteiros no hospital!! – Fui para um quarto com um caso de Parkinson, um de Alzheimer e um de cirurgia de reconstituição do maxilar, nos quartos próximos a maioria das pessoas com cortes e costuras na cabeça e afins... tremedeiras, perda de controle motor, e deficiências físicas decorrentes de choques traumáticos não são sinônimos de sintomas de pessoas loucas, muito pelo contrário, admito ter entrado aqui extremamente preconceituosa, e o mais incrível foi ver que essas pessoas, infelizmente, são extremamente lúcidas, porque ver as coisas tremendo, se ver no espelho e não se reconhecer e ter consciência de que aquilo você não pode controlar é uma sensação muito ruim. Mas foi muito legal ver pacientes que tinham Parkinson desde criança, e com 30 e tantos anos, depois da cirurgia saíram andando como se nada tivesse acontecido, um outro paciente que num dia teve a notícia que podia perder o olho por falta de lubrificaçao e que talvez não conseguisse andar por causa do tamanho do tumor na cabeça que prejudicou o labirinto, no outro dia chorando e indo embora caminhando equilibrado, por mais que seja um ambiente terrível e amedrontador, acho que esses detalhes é que prendem alguns médicos, como esse residente... Já percebi que os verdadeiros profissionais não consideram a profissão como apenas um detalhe na vida, mas sim como alguma coisa que faça grande parte de sua vida, apesar de algumas decepções, sei que existem alguns profissionais que se destacam, porque mostram que gostam do que fazem, tenho alguns professores maravilhosos, que me inspiram a continuar e ainda bem que pra cada área existe alguém assim...

Voltando à descrição do meu processo cushiniano...

Minha cirurgia foi antecipada para terça-feira, dia do jogo do Brasil na copa do mundo, ainda bem que o jogo era à tarde e a cirurgia de manhã, porque sabem como são brasileiros na copa do mundo, né... Assisti o jogo na UTI, ou melhor, ouvi o jogo, porque meus olhos estavam tão inchados e lacrimejando que eu não enxergava nada. Foi a pior noite da minha vida. Bom, a cirurgia foi transfenoidal, não tenho cicatriz nenhuma, é feita uma abertura dentro do meu nariz abrindo um caminho pra chegar até o cérebro e retirar o tumor, no meio desse caminho eles detectaram que eu estava com um quadro de sinusite muito forte, ou seja, meu rosto estava cheinho de pus – o que explicava as minhas crises terríveis de dor de cabeça, porque o meu tumor é micro e a principio não é motivo para dar dores de cabeça – aí tiveram que fazer uma raspagem antes da retirada do tumor. Saí bem da cirurgia, acho que o efeito da anestesia não foi tão alucinante, lembro de como eu saí do centro cirúrgico e tudo o mais... e infelizmente lembro da noite turbulenta da UTI, não preguei o olho nenhum segundo, estava com um cateter no pescoço, sonda (pra fazer xixi, porque eu não podia levantar e cumadre, nem pensar!), e dois cones dentro do nariz fazendo uma pressão significativa... foi traumatizante, eu tinha que respirar pela boca e a minha boca estava extremamente seca e se quebrando e meu rosto machucado dos curativos e esparadrapos aí quando lacrimejava escorria e ardia muito e a minha garganta também doía porque fui intubada na cirurgia... os enfermeiros sumíam e não tinha quem me desse água, eu não conseguia falar... 24h de sufoco, mas passou.

No outro dia vim pra outro quarto, com banheiro! A noite ainda foi ruim porque o nariz não para de escorrer, mas nada se compara a UTI, isso que a minha cirurgia nem foi tão invasiva assim... não desejo essas coisas pra ninguém, mas se é preciso, “é só ter paciência”, os dias vão passando e cada dia é melhor que o outro – voltei pra literatura de auto-ajuda – No primeiro dia ainda tive uma crisezinha, mas foi coisa rápida, a gente fica mole quando os pais estão perto, sabe como é, nessas horas quando a gente tá no papel de filho... às vezes a gente derrete um pouquinho demais quando sabe que tem alguém pra cuidar e ainda bem que dessa vez tinha dois alguém comigo, porque eles se cuidam mutuamente também...

Hoje é o quarto dia após a cirurgia, estou ótima, amanhã tenho alta. Nem parece que fiz nada, parece que tive um resfriado,não sinto gosto das coisas e estou que nem criança ranhenta que não limpa o nariz. Se a cirurgia for bem sucedida, o que me parece que foi, a problemática é a da cicatrização. Quando se abre o tal caminho no nariz, para fechar não é tão simples, eles colam com uma espécie de cola biológica, torcendo para que não se descole, para que eu não desenvolva uma fístula. Um sintoma de que teria ocorrido fístula, seria que eu ficaria com um líquido parecido com água escorrendo freqüentemente pelo nariz, que teria que ser drenado, para poder secar a cicatrização e não deixar o canal aberto pra infecções como meningite e doenças oportunistas do gênero... O cirurgião me disse que encontraram um (suposto) micro-adenoma e que foi retirado com sucesso e enviado para análise pra ter certeza do que era e etc, no mais, estou fazendo exames periódicos de sangue e estou tomando acetato de cortisona pra fazer meu organismo ir se acostumando aos poucos com a queda da produção do hormônio, cortisol. Ah! Outros efeitos colaterais possíveis (que me foram informados) seria uma tal de Diabetes Insipidus, que é uma retenção e perda grande de líquido, ou seja, sinto muita sede e faço muito xixi, por isso nesses primeiros dias tem que medir a quantidade de xixi e de liquidos que tomo, na primeira noite tive D.I., medicaram-me com uma injeção de DDAVP e ficou normalizado. Farei ainda mais exames pra saber os próximos passos do tratamento.

Ainda não estou num estágio muito poético da minha recuperação, talvez amanhã quando eu sair do hospital eu seja inspirada pelas musas... afinal, não sei ainda o que é (ter e) não ter cushing... mas uma coisa eu tenho certeza, sei que eu não sou eu, eu sou várias.