domingo, 10 de março de 2024

domingo

segunda-feira, recomeço 

terça-feira, não lembro das escolhas

quarta-feira, as lágrimas lavam a dor

quinta-feira, eu esqueço de comer

sexta-feira, eu esqueço de pensar

sábado, acordo sem ter pra onde olhar

domingo... o domingo é o vazio crescendo.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

sentimentos, crises e pandemia


Que loucura. Depois de um ano sem escrever, estou eu aqui de volta, em meio a uma pandemia. Muita coisa mudou nesse ínterim: o mundo inteiro está em quarentena, as aulas agora são online, as pessoas vão ao mercado de máscara, os antigos e famosos "motoboys" (que podem ser girls e podem não estar usando moto, e sim bicicleta, carro, a pé...) agora são os mais procurados e, também, explorados por nós e pelo capitalismo. 
Hoje, em uma aula online com oitavos anos, resolvi parar pra conversar com estudantes sobre o que estavam sentindo, pensando, ou como estavam agindo e transformando suas rotinas nesse período. É incrível como a falta de interação presencial afeta a gente e todas as coisas que estávamos acostumados. 
Muita gente afirma que, agora em tempos de isolamento social, as pessoas têm muito mais tempo para fazer coisas que não faziam antes. Temos mesmo? Ou estamos atolados em trabalho, em tarefas, em culpa por não estarmos sendo "produtivos" o suficiente de acordo com... quem? Me incomoda muito esse discurso de "não te faltava tempo, faltava disciplina" bla bla bla bla! Mais uma baboseira capitalista que exige de nós, em meio a uma pandemia, sermos máquinas de produzir conteúdo, máquinas de criação de ideias supostamente geniais, ou até "oportunistas". Estamos em crise. Crise de saúde. Crise emocional. Crise ambiental. São tantas crises que é difícil saber quais crises vêm primeiro. Inclusive, na atualidade, as pessoas podem ser divididas pelas suas prioridades nas crises. Há quem ache que o que vem primeiro é a crise financeira. Esses, normalmente, exigem dos que estão mais preocupados com a crise de fome que eles trabalhem pra manter o capitalismo girando. 
É tanta crise que eu até esqueci da minha antiga crise da escrita e lembrei que esse blog existia.
Vendo os posts antigos, eu iniciei esse diário virtual em abril de 2010.  DEZ anos atrás. É tempo. É mudança. Quem imaginaria que aquela Rafaella isolada em um quarto de hospital, que estava internada fazendo exames e que depois descobriria um tumor no cérebro, iria estar viva e saudável, passando uma crise mundial de saúde pra contar história...
Quando eu era bem mais nova, lembro de pensar que nada importante ou emocionante acontecia na minha vida. Nunca tinha quebrado um braço. Nunca tinha visto uma revolução. Nunca tinha tido um grande amor. Eis que um tumor no cérebro começou a mudar tudo que eu conhecia e sabia. Depois disso, veio o feminismo. Que baita revolução que o feminismo fez na minha vida! Fez eu entender relações de gênero, fez eu empoderar meninas, fez eu me envolver e me interessar por política. O feminismo fez eu entender que a sociedade é política. Eu me formei. Eu me tornei mestre. Eu descobri que minha mãe tinha uma doença autoimune. Eu casei. Eu trabalhei muito. Eu fui demitida. Eu sofri injustiças. Eu me recuperei. Tudo isso aconteceu pra eu morder a língua da Rafaella do passado que queria emoção. Agora estou eu aqui, há um mês em isolamento social dentro de casa, passando por uma pandemia mundial que daqui a muitos anos estará nos livros de História (junto com várias análises críticas sobre um líder de Estado completamente incompetente).
Lição disso tudo: a gente tem que cuidar com o que deseja. 
Mas a gente tem que aprender a viver, também. Tem que aprender a aproveitar os momentos "pequenos" e ver que isso também importa. Eu tô dentro de casa há um mês, tentando inovar em conteúdos online, morta de dor nas costas de ficar na cadeira em frente ao computador e corrigindo redações. Mas eu também tô vendo minha enteada começar a gostar de ler e ler livros inteiros em pouco tempo, eu tô conseguindo cozinhar com calma, eu não tô perdendo tempo dentro de um ônibus 4 horas por dia, eu tô vivendo bem (dentro do possível e dos meus muitos privilégios, por ter onde morar e ser uma pessoa com emprego) e eu quero lembrar disso daqui uns anos como um aviso pra todos mudarem seus hábitos, sua forma de ver o mundo. 
Acho que, embora eu esteja surtando com pressão psicológica, emocional e tudo o mais por causa de uma pandemia, eu vejo que é o momento da gente refletir, nem que seja 5 minutos, sobre como queremos ser daqui pra frente. Se queremos aceitar toda essa pressão do capitalismo acima de nossa saúde física e mental. Se vamos aceitar tanta gente não podendo escolher entre ficar em casa e correr riscos na rua indo trabalhar. Se vamos tentar mudar. 
Sei que normalmente eu escrevia e sempre finalizava com uma baita reflexão ou tinha um fechamento que me agradava, mas esse texto não tem um fim, porque eu ainda estou no meio de todo esse furacão e não sei quando vai ser o fim. Espero que os livros, ou e-books, de história daqui uns anos falem sobre como essa pandemia foi um divisor de águas.
Falando em água, é o que eu queria agora: um mergulho na água do mar, bem limpinha, depois de não ter ninguém nas ruas sujando...

E o que vocês querem agora? E pro futuro?

domingo, 19 de novembro de 2017

Sobre distâncias.

A primeira vez, que eu lembro, que tive que lidar com distâncias foi quando eu tinha uns 9 anos de idade e fui morar em Joinville, porque meu pai foi transferido do trabalho. Eu fiquei longe da minha família, dos meus amigos, dos lugares que eu estava acostumada. O pouco tempo, em números, em que fiquei naquela cidade, me pareceu uma eternidade, porque eu estava longe de tudo que - a princípio - me fazia ser eu. A partir daí, eu fui aprendendo a lidar com distâncias do meu jeito: ficando só eu e a escrita, seja lendo ou escrevendo. 
Eu entendi que nada, nem ninguém estava impossibilitado de estar distante. A escrita, sim, poderia não ser distante. Não ser distante de mim.

Depois disso, lembro de ter lidado com distâncias de diversas formas, mas as que mais marcaram foram as distâncias que não eram físicas. Quando eu fiquei internada, eu fiquei longe da minha casa e da minha família de novo, mas não foi só fisicamente. Os relacionamentos não são os mesmos depois que as pessoas passam por problemas que não sabem explicar. A gente fica marcada. As distâncias deixam cicatrizes.
Conforme o tempo vai passando, a vida adulta vai cada vez mais dando as caras, as distâncias vão se tornando mais frequentes. As amizades vão se distanciando fisicamente, cada um toma um caminho que sonhou, planejou, ou que surgiu. As distâncias físicas, aí, se tornam também emocionais, e a gente vai conhecendo outros tipos de distâncias. 
A gente vai descobrindo que uma pessoa do lado pode estar distante. A gente descobre que pode parecer distante, mesmo sem querer. 

A gente descobre que as distâncias deixam tantas marcas que a gente se distancia até de si mesmo.

A gente lê o noticiário, as redes sociais, e tenta se distanciar da realidade. 
A gente se distancia das ideias que um dia passaram na nossa cabeça. 
Eu um dia pensei que se a gente conversasse com qualquer pessoa, as coisas poderiam se resolver.
As distâncias são tão traiçoeiras que elas não esperam muito tempo pra aparecer. 

A gente vive buscando encurtar as distâncias. 

Eu vivo tentando encurtar distâncias. Eu vivo querendo o amor do meu lado. 
Por isso eu escrevo.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Água: remédio pras feridas do corpo e da alma.



Feriadão. Uma semana para o inverno. Florianópolis. Praia. Água gelada. Paz.

Desde pequena, sempre gostei de estar perto do mar, o mar me fez e me faz mais forte. Hoje, quando preciso me acalmar, um passeio à beira mar e fones de ouvido são terapêuticos.

Em muitos momentos de crise, daqueles que a gente acha que não tem solução, longe do mar, eu abri a torneira do chuveiro, me joguei debaixo d'água e deixei os pensamentos me banharem, junto com a água corrente e, às vezes, com as lágrimas. 

A água lava os sentimentos ruins, a dor e faz a gente enxergar melhor. 

Às vezes, um mergulho desobstrui as vias nasais... e os pensamentos.
Às vezes, a gente preferiria que a água não tivesse nos feito enxergar melhor, porque a realidade talvez não seja o que queremos ver.

Aí a gente mergulha outra vez.
Aí a água gelada nos lembra que só estando vivo pra sentir o prazer da água tocando no corpo.

Aquela gota deslizante que percorre todas as curvas é o desejo de liberdade.

Água salgada é liberdade.






terça-feira, 13 de junho de 2017

Como cheguei até aqui: cushing, gordofobia e feminismo.

Dia desses, saí de casa de manhã cedo. Como manezinha conhecedora do clima de minha cidade, fui encapotada trabalhar, com várias camadas de roupa. Porém, eu não ficaria o dia inteiro fora, então não coloquei nenhuma camiseta de manga curta por baixo, saí com uma blusinha preta do pijama mesmo. À tarde, por um acaso, acabei indo me encontrar com uma amiga e fiquei com calor. Ela insistiu pra eu tirar o casaco, eu disse que não, porque estava com uma blusa do pijama, que era muito apertadinha, e ela soltou a máxima "Nossa, tu era a última pessoa que eu ia pensar que se preocupava com essas coisas...". Fiquei pensativa depois disso... O que era "se preocupar com essas coisas"?
Eu penso nessas coisas. Eu penso em várias coisas. Eu também penso no que os outros pensam.
Me acho bonita? Sim, na maioria das vezes, mas não 24h. Feminista sim. Insegura, às vezes, também. Também nasci nessa sociedade cheia dos padrões de comportamento e beleza, já sofri muito pra chegar até aqui. Já tive épocas de me achar feia 24h por dia. Essa época passou, porque encontrei Jesus o feminismo. Mas a gente tem que entender que ninguém é tão desconstruído, tão "superior" a ponto de estar totalmente livre das amarras sociais ou de preocupações diversas... Por que estou falando tudo isso? Pra voltar um pouco no tempo e contar sobre o "chegar até aqui"... Bom, vamos direto ao ponto...

Quem me conhece sabe de toda minha saga contra o cushing e o tumor hipofisário, enfim, passei por muitos procedimentos médicos, por várias mudanças no meu corpo, por muitos problemas hormonais que mudavam meu humor, minha autoestima e, principalmente, meu relacionamento com os outros e comigo mesma. Inicialmente, antes de ter o diagnóstico e perceber visivelmente a mudança que vinha ocorrendo no meu corpo, eu sofria muito. Sofri, dentre muitas outras coisas, preconceito. Esse preconceito me fez, hoje, abrir meus olhos e ter empatia por coisas que eu nunca imaginaria. O preconceito que sofri tem nome e é bem conhecido por aí: GORDOFOBIA.

O próprio nome já é bastante sugestivo e dá para ter uma noção do que representa na sociedade dos padrões de beleza. A gordofobia, muitas vezes, vem disfarçada de cuidado com a saúde, ou de "gosto pessoal", ou de "divergências", mas na verdade é puro preconceito... Eu sofri muito por isso, porque eu também acreditava que não era certo ser gorda, que eu estava ficando feia, que pessoas gordas possivelmente não seriam amadas. Isso é muito forte. A gente propaga essas coisas sem nem pensar e ISSO TÁ TUDO ERRADO.

Não é certo pensar que alguém é bonito em detrimento de outros apenas pelo peso, ou pela cor da pele, ou pela textura do cabelo, ou pela classe social, ou seja lá quais outros muitos preconceitos que a gente ajuda a propagar, porque aprende desde pequena! 
Eu parei para pensar em tudo isso depois que me curei do cushing, mas se eu tivesse acesso a todas essas discussões maravilhosas sobre feminismo - como tenho hoje - tenho certeza que não teria sofrido nem metade do que sofri... 

O problema da gordofobia, no meu caso (e de muita gente, provavelmente), é que aquela frase supostamente inocente que as amigas fala(va)m "ah, tô me sentindo tããão gorda hoje" (pesando 50kg) eram como agulhadas em mim, ou socos no meu estômago. Aquele "me sentindo gorda" soava pra mim como "eu tenho 50kg e me sinto gorda, você está com 80kg e está HORROROSA". Sofri, quando comecei a sentir os sintomas do cushing e fui procurar ajuda médica. Como o cushing faz o organismo aumentar a produção de cortisol no corpo e este hormônio em excesso faz engordar, eu só ouvia dos médicos "você tem que se gostar, precisar emagrecer". Tudo que a gente ouve corrobora com a gordofobia, confirma o medo de ser excluída por mudanças na aparência. Eu estava doente, ser gorda não era minha doença, mas foi o que os médicos até então me faziam acreditar, além de toda a sociedade...

Até meus 16 anos, eu era uma menina bem magra, com 40 e tantos quilos, que tinha problemas de autoestima porque não tinha curvas. Detestava ir à praia, usar roupas curtas, ou qualquer tipo de roupa que mostrasse muito do meu corpo. Depois, com o cushing, meus preconceitos vieram todos à tona e bateram na minha cara pra eu acordar e perceber que todos os corpos são lindos. Feliz ou infelizmente, eu consigo enxergar isso hoje. Infelizmente porque precisei passar por um tumor para ter empatia e para ver como outras pessoas se sentiam. Felizmente porque hoje eu consigo enxergar a beleza com outros olhos (gostaria de já enxergar há tempos...).

O que tudo isso tem a ver com o início da história? Insegurança faz parte da gente, não está errado ter altos e baixos, a gente se desconstrói e se reconstrói aos poucos... mas a gente precisa se fortalecer, a gente precisa olhar pra quem está do nosso lado e pra nós mesmos. Às vezes, nossos preconceitos estão misturados com medo. Não está certo propagar preconceitos. Não está certo ter medo do que é fora do padrão. Não está certo sofrer para se enquadrar em um padrão que exclui e prejudica a todas e todos. Não está certo julgar os outros pelo que são. 

A gente não nasce desconstruído... a bicha lacradora, a negra tombadora e a feminista empoderada também têm inseguranças e não nasceram "prontas", pelo contrário, todo mundo tem sofrimentos e, como diz um amigo meu, cicatrizes na alma (no meu caso, no corpo também, literalmente)... Esses sofrimentos nos fizeram chegar onde estamos, mas esses sofrimentos não são as únicas coisas que nos definem. Gosto de acreditar que são justamente as conversas positivas acerca dos meus sofrimentos que me fizeram enxergar a beleza das coisas e das pessoas. 

Hoje, me sinto muito mais bonita do que quando pesava os 40 e tantos quilos. Hoje, convivo com minhas estrias, com minhas muitas cicatrizes de muitas cirurgias, com celulite, com uma barriga nada chapada e, sim, eu amo meu corpo. Eu tenho inseguranças, muitas, mas eu tenho consciência de ser quem eu sou. Esse amor, porém, não apareceu da noite pro dia. Esse amor foi construído com muito sofrimento, mas também com muitas alegrias e com a ajuda de muitas mulheres maravilhosas que passaram (muitas ainda estão!) pela minha vida e me fizeram entender que eu sou uma pessoa privilegiada, em todos os sentidos.

Minha felicidade hoje é ser uma pessoa saudável - que convive com pessoas lindas - que pode contar sua própria história... 


domingo, 23 de abril de 2017

Eu, tu, nós: treze razões, nove verdades e baleias coloridas.

Nos últimos dias, a internet foi tomada por treze razões, nove verdades, baleias coloridas, muitas mentiras, vários problemas... Como sempre, sendo professora e viciada no mundo virtual, eu reflito sobre as situações e sobre como alguns debates atuais podem contribuir para conscientização e/ou ajudar algum(a) estudante... Pensando nisso tudo, porém, eu voltei alguns anos no tempo e me vi novamente no Ensino Médio. 
Nas redes sociais, tanta gente julga e exige dos outros, mas será que ninguém lembra de como é/foi difícil passar por determinadas fases da vida? 
Eu comecei minha paixão por livros porque, com 8 anos, me sentia sozinha na escola e passava recreios na biblioteca. No Ensino Médio, apesar de não me sentir mais tão sozinha, eu convivia com muitos amigos que se mutilavam; eu chorava sem motivo; eu ficava noites sem dormir pensando que eu deveria ser e fazer tanta coisa e não sabia se valia à pena; eu exigia tanto de mim mesma nos estudos que tinha dores de cabeça intermináveis; eu não admitia que pudesse não passar no vestibular, embora meus pais dissessem que não tinha problema; na minha mente, eu carregava o peso do mundo nas costas; eu odiava que as pessoas dissessem que era "só uma fase"; eu me sentia sozinha mesmo com muitos amigos...
Meu escape sempre foi a escrita e a leitura, comecei a escrever em blog quando eu tinha uns 13 ou 14 anos - antes disso eu já escrevia em diários desde os 8 anos. Também sempre tive apoio dos meus pais, sempre tive alguém para conversar, mas nem sempre isso é possível e tem gente que não dá conta de "sentir demais". Quando estava saindo do Ensino Médio, com crises existenciais (que permanecem) , com exigência do vestibular e logo em seguida um tumor como cereja do bolo, eu pensava em tanta coisa ao mesmo tempo que as lágrimas já eram minhas fiéis companheiras... 
Passar no vestibular, superar o tumor e ser professora foram meus objetivos e apenas por um motivo: eu queria, na minha mente de adolescente, ajudar outras pessoas a passarem por essa fase, eu queria que fosse mais fácil para outras pessoas e, se eu pudesse ajudar de alguma forma, essa seria minha "missão". Fazer este blog, inicialmente, por exemplo, era um escape de quando eu estava internada. Hoje, sei que ele ajuda muitas pessoas que passam ou passaram pelo Cushing. Sei, também, que os debates em sala de aula e conversas com estudantes ajudam muitas e muitos deles a passarem por determinadas coisas que não são conteúdos escolares. Eu não sou a Madre Teresa de Calcutá, mas ajudar outras pessoas me ajuda. Ninguém precisa fazer esforços hercúleos para ajudar alguém, ter empatia já é um começo, escutar o outro já é um começo, sorrir para alguém já é um começo...
Hoje, quando me sinto mal, coloco uma música bem alta, apago a luz e danço sozinha, deixo as lágrimas virem - assim como quando eu era adolescente - porque não preciso me reprimir, sei que colocar pra fora ajuda... mas depois disso, lavo o rosto e me fortaleço, porque sei que lá fora outras pessoas também passam por isso e eu não estou sozinha.

Pode parecer simplório, pode parecer ridículo, pode parecer insignificante, mas fazer as pazes com o espelho nos ajuda a ser melhor, também. Sejamos melhores, sendo nós mesmos, sendo melhores juntos.




terça-feira, 28 de março de 2017

O que eu vou fazer com essa tal liberdade?

No início desse ano, pedi às alunas e alunos dos segundos anos do Ensino Médio, depois de algumas discussões, que escrevessem uma crônica sobre Liberdade. Os textos, dos mais variados pontos de vista, fizeram-me refletir sobre inúmeras coisas e - para variar - estudantes me deram um baile na criatividade e em lições.
Dentre os textos, um deles foi iniciado com muitos desvios de ortografia e de norma padrão da Língua, discorrendo sobre a liberdade de escrever sendo uma pessoa com problemas sociais e psicológicos; à medida que eu ia lendo - e me surpreendendo com a escrita, pois era de estudante que eu já conhecia, com excelentes notas e que normalmente não cometia equívocos de ortografia - eu refletia sobre o assunto. Ao final do texto, nova surpresa: uma assinatura. Texto em primeira pessoa, como se fosse uma carta de despedida de alguém que sofria preconceitos das mais variadas formas, inclusive linguístico. Porém, o eu lírico era de quem achou a carta e a transcreveu, refletindo sobre a situação da falta de liberdade de "ser". Um soco na minha cara. Outro texto, descrição da aula, desde o momento em que entrei na sala, até a hora da escritura, em que eu - com a ~autoridade~ de ser professora, - solicitei o texto, sem que alunas e alunos pudessem escolher a temática, dentre outras reflexões acerca do sistema de ensino (!!!!). 
Próxima aula. Outro assunto. Outra turma. Primeiros anos do Ensino Médio. Dia oito de março. Igualdade de gêneros. Identidades. Feminismo(s). Debates. Perguntas. "Professora, por que as feministas não gostam de receber parabéns no dia da mulher?"; "Professora, por que existe dia da mulher e não do homem?"; "Professora, por que as feministas não lutam para ter alistamento militar, ou pela licença paternidade?"; "Professora, feminismo é o contrário de machismo?"; "Professora, mas qual é o tipo de feminismo que não pode se depilar?"; "Professora, mas como existem mulheres que não são feministas?"; "Professora, mas a gente não tem espaço para dar nossa opinião"; "Professora, como eu sei que não estou sendo preconceituoso?"; "Professora, como uma mulher pode oprimir outra mulher?". Tudo ecoava na minha cabeça e eu só conseguia pensar nos textos escritos pela outra turma. Comecei do início, contando quem eu era, por que eu estava ali e por que eu pedi para todo mundo sentar no chão e fazer perguntas.
Ser professora é lidar com pessoas e dúvidas reais, é todo dia ter desafios. Não é como lidar com comentários raivosos de internet, onde as pessoas não estão olhando nos olhos umas das outras. Ser professora é ter consciência de que meus ideais e meus posicionamentos não são a verdade absoluta, é ter o cuidado de responder perguntas refletindo sobre as escolhas das palavras e deixando claro àquelas pessoas que estão na minha frente que elas são livres para criticarem, questionarem ou reformularem certos conhecimentos. Ser professora é saber que estamos em constante formação, é se desconstruir e aprender com as outras pessoas dentro da sala de aula. Ser professora é estar em constante interação. Ser professora é, basicamente, ser uma pessoa. Isso pode parecer redundante, tautologia, mas muita gente não tem consciência disso. Muita gente acha que ser professor é ser doutrinador. Muita gente acha que ser professor é usar sua autoridade para formar um exército de pessoas que pensam igual. Muita gente acha que ser professor é poder limitar os pensamentos de outras pessoas. Muita gente acha que ser professor é ser ditador. Muita gente que acha essas coisas não tem relação nenhuma com Educação, não estudou para ser educador(a) e - na maioria das vezes - nem defende a Educação. De todas as professoras e professores que eu conheço, nenhum deles faz parte dessa gente. 
As respostas das perguntas lá de cima? Foram construídas em conjunto com todas as pessoas que estavam dentro daquele ambiente. Estudantes entenderam que sala de aula é lugar para perguntas. Estudantes entenderam que uma professora pode ter posicionamentos diversos e respeitar opiniões alheias. Estudantes entenderam que Igualdade pode receber vários nomes, alguns chamam de Feminismo (e que não existe só um tipo de feminismo, assim como não existe só um tipo de mulher!). Estudantes entenderam que existem estereótipos sobre inúmeras coisas, sobre feminismo é só mais uma delas. Estudantes entenderam que às vezes somos preconceituosos, mesmo sem perceber. Estudantes entenderam que existem diferenças entre homens e mulheres, mas também existem diferenças entre as próprias mulheres. Estudantes entenderam o que é privilégio. Estudantes entenderam que na minha sala de aula podem questionar, criticar e serem livres para fazerem escolhas, mas que tudo na vida tem consequências. 
Ser uma professora feminista é ter o objetivo de ensinar que sala de aula é lugar de respeitar opiniões, posicionamentos, histórias de vida. Ser professora linguista e feminista é aprender a aceitar que, às vezes, as pessoas têm nomes diferentes para as mesmas coisas e algumas pessoas têm medo de usar certas palavras, porque podem ser socialmente prejudicadas. Ser professora literata e feminista é entender que as subjetividades existem, mas podem ser desconstruídas e, às vezes, isso acontece naturalmente. Ser professora feminista é entender que estudantes são seres em formação, assim como eu. Ser professora feminista é lutar pelos direitos das e dos estudantes serem o que quiserem. Ser professora feminista é vibrar de felicidade quando estudantes querem ser pessoas melhores e lutar do teu lado para que outras pessoas sejam felizes sendo como quiserem.

P.s. Comecei esse post pensando em falar sobre inúmeros assuntos acumulados, sobre o projeto Marias vão com as outras, sobre eu ser libriana e não saber o que fazer com a tal liberdade, sobre o tumor finalmente estar diminuindo... Mas as palavras saem livremente da minha mente para os meus dedos de forma diferente do que eu planejo, então... o que eu fiz com a liberdade de hoje foi esse post. :)