terça-feira, 18 de maio de 2010

a colheita do desprezo

Então, o que é arte? Não tenho pretensão nenhuma de achar uma definição, mas tenho a prepotência de fazer arte significar alguma coisa pra mim. E o que isso tem a ver com minhas divagações e relatos? Oras, tudo a ver. Primeiro porque voltei às aulas e a todo momento me vêm questionamentos do tipo “isso tem alguma utilidade? mas quem deu valor pra isso?” E é esse mesmo questionamento que todo mundo faz quando vê algum quadro de pintura abstrata, por exemplo. Arte não precisa ter utilidade, mas tem valor sim. Valor de culto? Talvez. O que eu acredito é que arte seja uma questão de ponto de vista. Pode ser que pareça relativismo, mas é só o que EU vejo como arte, que vai ser arte pra mim. Eu penso que a todo momento estamos valorando (e não valorizando) as coisas a nossa volta, buscamos classificar essas tais coisas e é isso que abre uma espécie de buraco negro no mundo real, porque não se consegue explicar as classificações feitas pelo MEU ponto de vista... É engraçado como costumamos buscar sentido nas coisas e se não encontramos acabamos desmotivados ou menosprezando tal objeto. Quando, por exemplo, encontramos uma poesia aparentemente babaca e dizemos “isso é poesia? isso até eu posso fazer! mas se fosse eu com certeza não teria o mesmo valor” Claro que pode fazer e realmente não teria o mesmo valor, primeiro porque você é uma pessoa diferente e não sabe as condições em que aquela poesia foi feita. Não que precisamos entrar na mente do poeta, mas devemos fazer as coisas significarem pra nós, mesmo que seja “isso são várias palavras jogadas ao acaso que não fazem o menor sentido”. Acho que o que é feito sem obrigação de ser alguma coisa determinada é arte a partir do momento que alguma coisa intuitivamente me diz que aquilo é arte.

Não sei se essas viagens fizeram bem pro meu senso crítico, porque ultimamente eu vejo arte em tudo. Da última vez que fui pra SP, por exemplo, no táxi indo para a pousada fui observando a rua, os prédios pixados desde o primeiro até o vigésimo andar, construções abandonadas, shoppings, hotéis, zilhões de carros em fila no trânsito... tudo aquilo formava imagens diversas e representavam alguma coisa pra mim e me perguntei “por que isso não pode ser arte?” Afinal, o Coliseu pela metade é arte, a Torre torta de Pisa é arte, pinturas encontradas nas cavernas são consideradas feitos incríveis... quem sabe daqui uns anos essas pixações não sejam veneradas? Eu, particularmente, deixando de lado todo o discurso das boas maneiras, admiro não só as pixações, mas todo o processo que as envolve, a vontade de transgressão e a originalidade daquele feito; nessa Era da reprodutibilidade técnica um prédio de vinte andares TODO pixado é uma coisa única, impossível de se reproduzir, mesmo que se fotografe, serão diversos ângulos e pontos de vista de fotógrafos diferentes, a fotografia é uma arte oportunista, ela captura uma parte da arte e se vale dela... Agora o que eu capturo das coisas é arte completa. Parece um pouco da idéia de dadaísmo, de tirar algum utilitário do seu contexto original e passar a venerá-lo como arte, mas pra mim não é questão de tirar um mictório do banheiro e colocar no museu e dizer que é arte, a questão é fazer significar. Pode ser uma visão muito subjetivista das coisas, mas e daí? Eu não consigo ver o mundo com os olhos dos outros, eu enxergo com os meus olhos e só posso saber das coisas partindo da minha visão (e audição e tato e etc)...

Nessa de enxergar arte em tudo, no dia do cateterismo tive minha última visão artística dos momentos no hospital e fiz minha constatação: Médicos, sem saber, podem ser poetas! (ah! e comediantes também...)

Última semana no hospital, ansiosíssima... sou avisada para estar pronta as 7 horas da manhã pra me preparar pro exame, sou chamada as 10h30, desço na maca para a sala dos cateterismos e espero até as 14h, lógico. A princípio tinham me colocado numa sala de espera junto com outras pessoas, não sei por qual motivo uma enfermeira resolveu me colocar numa sala sozinha do lado do local de exame, ouvindo tudo que os médicos falavam durante o exame de outro paciente. Eu estava tranqüila, já estava esperando há tanto tempo que a minha noção de tempo já estava meio defeituosa... já tinha até abstraído a idéia de estar com aquela famosa camisolinha aberta nas costas e que dentro de alguns minutos eu seria furada (e estaria acordada!) em local nada confortável... Enquanto o meu tempo defeituoso passava eu ouvia a conversa dos médicos “ah, nem terminei de fazer meu imposto de renda ainda”, “é, eu faço horas lá na tomografia também, tenho que ver como vai ficar isso”, “falando nisso, semana passada peguei um caso bizarro do P.S.” várias conversas aleatórias que me alienavam da minha situação e ao mesmo tempo me traziam pensamentos meio apavorantes... coisas do tipo “é, eles estão falando coisas do cotidiano então quer dizer que o exame é fácil, tranqüilo” e logo em seguida “ai, senhor, eles não estão prestando atenção no que estão fazendo, nem ligam pro paciente, vai que fazem alguma coisa errada” Enfim... contando por cima, o caso bizarro do P.S. foi a radiografia de um objeto não identificado dentro de um orifício que não deveria ter nada dentro. Sim, bem lá. Chutem só o que foi encontrado... dou cem reais pra quem acertar... Tudo bem, eu conto, só porque eu sei que ninguém acertaria mesmo... Pois é, por algum motivo que não consigo imaginar, uma criatura, supostamente um ser humano, inseriu uma berinjela dentro de si mesma, não conseguiu tirar e teve que ir para o Pronto Socorro e virou motivo de piada! Pelo menos sua identidade permaneceu obscura... os comentários foram vários “mentira! será que ele não tinha dinheiro pra um vibrador?”, “vai ver era naturalista, vegetariano”, “será que ele incorporou aquele macaco da piada? tava medindo pra ver se saía depois de comer e não saiu” e por aí vai...

Voltando para o meu contexto, depois de muito esperar, vieram me chamar para entrar na sala de cirurgia para o exame... ar condicionado ligado, eu tremia horrores, mas não era só de frio, comecei a ficar apavorada, porém, fingi que estava muito tudo bem, não podia fazer feio, afinal, eu queria ir embora o mais rápido possível. Sala com no mínimo uns 7 médicos, mais umas 3 enfermeiras, mais os médicos (não sei quantos eram) que ficavam na sala ao lado, monitorando as imagens no computador. Primeira etapa: anestesia local; eu pensava que iria dormir e só acordaria depois que tudo terminasse, doce ilusão. Lá estava eu, nua, com frio e apavorada... Deito na maca, eles prendem minha cabeça com fita crepe pra eu não mexer (afinal das contas, meu exame era na cabeça) e eu vejo o humilde tamanho da agulha da anestesia. Tudo bem, eu nunca tive problemas com agulhas mesmo, depois nem vou sentir mais nada. Ah, eu senti sim e dói... Já tinham me contado como era o procedimento do cateterismo, mas sentir e vivenciar aquilo é, no sentido benjaminiano , de fato, uma experiência única. Para amenizar o constrangimento e a tremedeira, fui coberta com vários panos que só deixavam duas aberturas na minha virilha, como se fosse um alvo (e era!), jogaram um líquido super gelado que deixou minha perna dormente pra poder aplicar a anestesia (que doeu do mesmo jeito), tudo suportavelmente dolorido, mas apavorante. Grudei minhas mãos e pernas na maca; de tão tensa que eu estava ficaram roxas. Depois da anestesia começou a novela pra encontrar o local certo que deveria ser colocado o introdutor (um instrumento que provavelmente parece uma caneta bic, porque, analogicamente, foi a grossura dos buracos que ficaram na minha virilha, dos dois lados). Pensem numa enfermeira inexperiente tentando encontrar a veia de um paciente que tem as veias bem fininhas que quase não aparecem e ela não pode errar porque essa veia não pode estourar de jeito nenhum, é mais ou menos isso, só que são médicos, e eles estão procurando a veia que vai levar o catetér (uma mangueira bem comprida que passa por dentro de mim pra chegar no objetivo, tipo a carga da caneta bic, só que bem mais comprida) até o meu cérebro pra poder fazer a coleta de sangue. Conseguiram do lado direito suficientemente rápido, mas do lado esquerdo... não sei dizer quanto tempo levaram, porque como eu já disse, minha noção de tempo estava meio afetada... só sei que em um determinado momento se ouve “olha, tá difícil, posso ficar o dia inteiro aqui e não vou conseguir, ou a gente marca pra outro dia ou vai direto” (direto, quer dizer, “vamos direto na jugular, chame o anestesista porque teremos que sedá-la, esse procedimento é muito mais perigoso e ela não pode estar acordada porque não pode se mexer de jeito nenhum”) Ah, meus medos se intensificaram, e não era nem o medo do procedimento, era medo de ter que sair dali sem ter feito o que deveria, e ter que esperar mais pra ter algum resultado, aí virei ‘macha’ e me pronunciei “ah, não, avisa pra minha mãe que vou demorar mais e pode chamar o anestesista”, só foi a médica virar pra telefonar pra minha mãe que o médico disse “ah! não precisa, consegui!” Nossa, que alegria, quase chorei de felicidade!

Imagens parecidas com radiografias apareciam em um monitor e os introdutores e os cateteres estavam nos seus devidos lugares, tudo agora era poético... Assim que o médico estava chegando com o cateter no cérebro ele me notifica “assim que eu chegar no local certo, você vai escutar um barulho, que a maioria das pessoas diz que é parecido com uma borboleta batendo as asas numa poça d’água”, não escutei nada... de repente... “TCHIBUM” uma turbina de um avião pifa e ele cai a toda velocidade no meio do oceano do meu ouvido. Ok, o catéter está onde deveria. É uma espécie de pressão contínua no ouvido, como se eu estivesse subindo uma serra e de repente aquele estalo, só que em proporções deveras aumentadas. Agora, dois tubos de cada lado são conectados aos cateteres para a coleta do sangue a ser examinado. Cada médico fica responsável por um tubo, pois a coleta deve ser feita simultaneamente para que a análise do exame seja bem sucedida, as primeiras miligramas são desprezadas e então fazem a coleta 3 vezes (enchem 2 tubos de cada lado, a cada vez, ou seja, 4 x 3, 12 tubos ‘uau, eu sei matemática!’) , com um intervalo de tempo entre elas... Aí, as instruções “Fulano fica com o lado direito, Sicrano fica com o lado esquerdo, Beltrano colhe o desprezo” e as risadinhas e surgiam mais motivações literárias “Ah, segundo o ditado, quem colhe tempestade é porque semeia vento e agora, pra colher desprezo precisa estudar medicina”, nessa altura do campeonato eu já estava zen de novo e fiquei pensando em possíveis títulos de efeito para livros best-seller imaginem: “A colheita do desprezo”, achei o máximo... O exame acabou 16h30, mais ou menos; não podia me levantar da cama até o outro dia (noite de reflexão acerca do meu suposto determinismo, vide post anterior) Depois de todas as agonias fui liberada do hospital no outro dia mesmo e tudo era lindo, tudo agora é arte em potencial...

domingo, 2 de maio de 2010

crise dos ouvintes (ou, determinações culturais).

Walter Benjamin que me desculpe, mas estou revendo meus conceitos... o “narrador” não está em crise, a crise é dos ouvintes. Acho que existem muitas pessoas que querem falar, mas as aptas a ouvir é que estão extintas. E não é um simples “ouvir”, é ter que estar aberto a suportar opiniões e pontos de vista e críticas e relatos e preconceitos e culturas e um turbilhão de coisas. Como diria Goethe, falar é uma necessidade, escutar é uma arte. Essa moda de blog, twitter e o escambal, por exemplo, se eu (e mais um milhão de pessoas) não tivesse o que “narrar” não teria porque criar essas ferramentas... tudo bem que a invenção da imprensa (livro, etc) foi mais ou menos uma nova forma daquela tradição dos mais velhos contarem histórias e etc e agora a internet é a “próxima geração” e estamos nessa correria da modernidade em que não conseguimos dar conta de todas as “(in)formações” que estão ao nosso alcance... mas é justamente esse o ponto, por não conseguirmos dar conta do que ouvir, nossos relatos acabam se tornando fluxos de consciência, opiniões e pontos de vista jogados em algum lugar, coisas que nem todos estão dispostos e/ou tem habilidade pra absorver... ou seja, volto a dizer que a crise é dos ouvintes. Não sabemos ouvir (ou ler, no caso). Mas quando se está no hospital, a gente (eu, pelo menos) aprende a ouvir tudo, e entender o tempo, e percebe ele e enquanto isso as coisas vão passando e você consegue perceber muito mais do que está passando junto com o tempo, inclusive as palavras das pessoas que vão passando... É, exatamente, bem assim confuso. O que eu percebo nesse meio tempo? Percebo que o que nós percebemos é cultural, que vivemos praticando rituais, que várias coisas que eu percebo já foram percebidas por outras pessoas, mas é incrível quando eu constato isso sozinha. Lá vou eu para relatos conectados à suposta teoria... Após o cateterismo – sim, finalmente o último exame! – fiz uma constatação durante a recuperação do exame, no hospital: a maneira como fazemos nossas necessidades fisiológicas é cultural. Parece ridículo, mas é verdade. Antigamente, as pessoas faziam xixi em penicos que ficavam no meio do quarto, depois criaram umas casinhas com buracos, depois de um bom tempo que criaram os banheiros e o vaso sanitário e papel higiênico e todas essas coisas maravilhosas; ou seja, aos poucos os costumes vão mudando porque a cultura vai mudando, novas invenções vão surgindo, novos valores vão surgindo, mas aí me deparo com a situação: feito o cateterismo você não pode sair da cama até o outro dia, traduzindo: faça xixi na “cumadre” (uma espécie de penico de alumínio) deitada na cama. Olha, admiro quem consegue... mas eu, travei completamente, a minha cultura, a minha época, os valores e a forma que fui criada simplesmente me condicionaram a fazer xixi no banheiro, é inexplicável o bloqueio da minha mente em relação a prática de fazer xixi num penico no meio do quarto. E eu fico me perguntando, “será que se eu tivesse nascido em algum outro lugar que as pessoas ainda façam xixi no penico eu talvez não tivesse ficado quase explodindo de vontade até o outro dia? esse bloqueio são questões psicológicas? meu cérebro é assim tão determinado?” Não sei, só sei que a sensação de alivio no outro dia quando fui no banheiro foi uma coisa tão boa que eu até esqueci que poucos minutos depois eu teria que tirar o curativo (leia-se: pedaços de esparadrapo superultramegapower aderente envolta das minhas pernas, fazendo uma pressão imensa para que os belos buraquinhos do cateterismo não sangrassem de jeito nenhum, quase trancando minha circulação de tão bem presos). Pior do que depilação com cera quente! Que diga-se de passagem, é mais um ritual meio idiota que nós fazemos por uma questão cultural, porque antigamente isso também não acontecia, mulheres tinham os “apêndices filamentosos da pele” bem compridinhos, barbear-se era coisa de homem... Mas eu também não sei como as criaturas conseguiam viver desse jeito, acho tão mais higiênico, sinto-me tão mais limpa sem “excessos”, assim como tomar banho, é um habito condicionado culturalmente, que pra mim é quase uma coisa catártica. Higiene é cultural, e nesse ponto sou extremamente etnocêntrica, adoro a sensação de um banho e agradeço por ter aprendido esses costumes, mas como não sou de outro jeito, não sei se talvez eu também não gostaria de tomar banho somente uma vez no mês, ou coisa parecida... Talvez Bakhtin me entenderia, somos presos a costumes e nem nos damos conta disso, às vezes nem sabemos quem foi que nos passou tais hábitos, é uma forma de ser que está implícita...