segunda-feira, 16 de novembro de 2015

sobre ser mulher, andar de ônibus e o medo - não necessariamente nesta ordem.

Eu já tinha planejando há dias (ou talvez meses e até anos) escrever sobre isso, mas a rotina e a falta de motivação estavam me impedindo de tirar um tempo para isso. 
Nos últimos meses, as redes sociais e outras mídias estão bastante lotados de lutas, discussões, reivindicações e divergências. Desde um reboliço após um reality show em que uma menina de doze anos de idade foi assediada virtualmente e a criação da hashtag #MeuPrimeiroAssedio, a guerra dos sexos vem se acirrando cada vez mais. Apesar de eu concordar que tudo na nossa vida faz parte da formação do nosso ser, caráter, personalidade, enfim, falar em "meu" - ou seja, posse de uma coisa negativa - sempre me deixa com um pé atrás. Procuro tentar não carregar carga negativa para que isso não me transforme em alguém desacreditada na bondade das pessoas. Apesar disso, ler a timeline e as notícias não trazem coisas muito positivas. Tudo que me acontece, ou ao meu redor, me instiga a fazer uma anamnese e refletir...

Quando eu tinha - provavelmente - 11 ou 12 anos, estava na sexta série do Ensino Fundamental II, era um dia de sol e fui, como vários outros dias, de bermuda (do uniforme!) para a escola. Estava sentada fazendo atividade em dupla, lembro como se fosse hoje, e de repente... quando sentei e um colega sentou do meu lado, no meio das risadas entre a feitura do exercício pedido, ele deixa cair algo no chão e quando abaixa para buscar, olha para minha coxa e diz: credo, Rafa! Tu não depila a coxa? Eu, com doze anos de idade, que nunca tinha pensado nisso, fiquei quieta, dei risada. A risada pode ter sido uma defesa de uma menina que não sabia lidar com algo que ela não tinha noção que existia até então. Essa menina foi para casa; quando tomou banho, pegou a lâmina da mãe escondida e tirou aqueles pelos que foram motivo de risada e os tira até hoje, porque não se sente bem com eles.

Quando eu tinha 15 anos, estava no segundo ano do Ensino Médio, estudava no Colégio Militar, ficava o dia inteiro no colégio - tinha aulas de reforço, teatro, fazia trabalhos, exercícios de Química infinitos - e voltava tarde para casa. Num desses dias, eu, com sono, sentada no banco do ônibus próximo à janela, olhava as paisagens, enquanto quase dormia e acordava a cada lombada. Passei o percurso todo olhando pela janela. Próximo do ponto que eu ia descer do ônibus, me ajeito para levantar e o homem que estava no meu lado me pede desculpas e para de se masturbar e fecha a calça. Levantei, sem reação, fiquei alguns segundos olhando para todos no ônibus, que pareciam já estar me olhando há tempos, mas não falaram e não fizeram nada. Desci do ônibus chorando, sem saber o que fazer. Cheguei em casa e pedi para minha mãe me trocar de colégio, pois não queria pegar ônibus nunca mais.

Quando eu estava no cursinho pré-vestibular, conversava com um amigo (e ex vizinho do <3), de repente, durante a feitura de exercícios, uma moça levanta a mão para tirar uma dúvida com o professor. Embaixo do seu braço: pelos, muitos pelos. Minha reação foi de surpresa, susto, digo que talvez até repulsa. "Como uma mulher podia ter pelos? Que nojo!". Depois voltamos aos exercícios e nada foi falado.

Entrei na universidade. 
Ia ter que pegar ônibus todos os dias novamente, mas agora eu não sentava do lado de nenhum homem (e costumo ainda evitar isso). Aprendi maneiras de evitar isso: às vezes, colocando a bolsa no banco do lado, nunca fazer contato visual quando um homem entra no ônibus, procurar um assento que já tenha uma mulher do lado, sentar no banco do corredor para dificultar a passagem para o banco da janela, ou até mesmo ficar em pé - mas evitando contato com homens que param do lado, no corredor, e que parecem não ter nenhuma noção de espaço e ficam esfregando as partes íntimas na gente.
Encontrei a menina do cursinho num círculo de amigos anos depois. Ela ainda tinha seus pelos. Eu passei a entender que isso não tinha problema nenhum, que isso é uma opção pessoal e que isso é saudável. Apesar disso, não gosto deles em mim. Se foi um trauma, ainda não superei. Admiro as mulheres fortes o suficiente que combatem essas amarras todos os dias. 

Hoje, sou professora, ainda evito sentar perto de homem no ônibus, ainda atravesso a rua quando vejo homens ao longe, em locais não muito movimentados, ainda sofro periodicamente com depilação com cera quente e lâminas, ainda fico sem reação quando alguma coisa me acontece, como um homem tenta forçar beijo na balada, ou quando eu ando pela calçada e homens nos seguem com o olhar, ou infinitas outras coisas que chamam de "brincadeiras", ou dizem que "o mundo está muito chato, reclamam de tudo agora".

Ontem, uma ex-aluna, que tem doze anos e está no oitavo ano do Ensino Fundamental II, compartilhou no Facebook uma foto da sua coxa com uma marca de mão vermelha, explicando que aquilo era resultado de estar andando na calçada, usando short, e dois caras de moto passarem e darem um tapa e saírem correndo. E ela ficou sem reação imediata, depois apenas chorou, e xingou, sem mudar a situação que ocorreu. E ela conheceu o que eu conheci também há anos, e todas as mulheres conhecem um dia, muitas sem saberem o nome, mas sabem que acontece.

O nome disso é MACHISMO. Isso é resultado histórico de uma sociedade que sempre colocou as mulheres em segundo plano. Eu sempre evito compartilhar coisas polêmicas nas minhas redes sociais por querer evitar discussões que não vão dar em lugar nenhum, mas isso me mata (e mata várias mulheres) aos poucos. Ficar calada quando devia estar gritando. Viver como se estivesse tudo bem, quando na verdade estamos em constantes lutas. Lutas diárias pelo direito de ter direitos. Meus pais sempre me falaram, desde pequena: "Rafa, estuda, luta pelo que tu quer, pra nunca precisar depender de ninguém, principalmente de homem. Tu és capaz!" Levo isso comigo no subconsciente, consciente, ego, superego, etc... assim como tudo que a vida me fez passar. E, como dizem que tudo que passamos é parte de nós, tento ser uma professora que faz muitas perguntas e tenta desestabilizar os conceitos de tudo que os estudantes pensam que é "fixo". Se até a Química afirma que as coisas se transformam, eu, como professora de Linguagens - considerando-me também das Humanas <3 - preciso fazer meu papel pra tentar de alguma forma parar esse ciclo de sofrimento, que meninas de doze anos são iniciadas, sem nem saberem o que é.

Por favor, se for comentar ou querer se defender, antes reflita, coloque-se no lugar das mulheres. Você não vai conseguir sentir nem por um momento o que sentimos todos os dias - o medo de ser mulher - mas podes tentar ajudar a diminuir esse medo. Obrigada por fazer o mínimo.