Me dei o luxo de escrever na primeira pessoa, e de qualquer jeito... quer dizer, do meu jeito. Não vou me preocupar em fazer citações com referências, minhas narrações são de experiências vividas, adquiridas e absorvidas...
Não vou ser linear e nem tenho pretensão de esclarecer muita coisa, até porque escrevo em meio a uma confusão de pensamentos e observações em um lugar bem conturbado. Esse mundo paralelo de onde me enuncio é o Hospital das Clínicas de SP. Não corri atrás de coelho branco pra vir parar aqui, aliás, não é nem de perto um mundo de maravilhas, pelo menos, não no sentido tradicional atribuído à palavra.
Terça-feira de abril, aula sobre referência, uso de termos que podem ser atribuídos a uma mesma palavra para progressão no decorrer do texto. Discutia-se como uma flor pode virar lixo. Um telefonema e a notícia esperada há algum tempo “você será internada semana que vem”.
Hospital Escola, endocrinologia, aqui estou eu. Sempre fui de observar minuciosamente as coisas à minha volta, quando cheguei esse exercício começou a se aprimorar. Primeiras impressões “meu deus do céu, onde eu tô?!” Lugar imenso, muitas pessoas, muitos sotaques, muitas doenças! Quarto dividido com mais 3 pessoas, histórias diferentes, conversas diferentes e parece que existe uma necessidade coletiva de contar causos...
Tolerância nunca foi meu ponto forte, nem calma... Mas como ouvi dos médicos “a irritabilidade excessiva é sintoma da doença”, ou seja, eu não sou irritada, eu sou doente! “UAU! que divertido!”
Então, logo que eu cheguei já me avisaram que viriam alunos do curso de medicina fazer entrevistas com os pacientes. Aí você faz a conexão com o significado da palavra. Pra agüentar, é bom dar risada de tudo (não que eu não chore por tudo, muito pelo contrário!). Horário de visita somente das 15h às 17h, mamãe conseguiu autorização pra ficar desde as 12h comigo “graças a deus! ou melhor, graças à enfermeira-chefe!”
Primeiro dia, 6h da manhã “vamos levantar pra se pesar!” Sim, eu sei que isso não é hotel e que as coisas têm seus horários, mas esperar mais uma horinha vai mudar tanto o meu peso? “Ok, peso e volto a dormir” 7h da manhã, alunos do quarto ano “Bom dia!” pensamentos ao acordar “pqp, não deu tempo nem de escovar os dentes” mas lá vamos nós para a primeira entrevista... “Você pode nos contar como chegou aqui?” primeiro pensamento “Atos ilocutivos? É, Acho que não é uma pergunta retórica... melhor não dizer que vim de avião.”
Como é a primeira vez então vamos para a versão não resumida da historinha...
Há três/quatro anos atrás, eu pesava 48kg e começaram a aparecer estrias na horizontal, na minha canela. Procurei, então, um angiologista, pois aquilo não pareciam estrias normais, “dói? não? é, isso são estrias, o tratamento é estético, não é comigo”, procurei um dermatologista, dois dermatologistas, três dermatologistas “você é bem branca, sua pele é sensível, vou te receitar tratamento com ácido retinóico, que pode ser que em seis meses elas comecem a esmaecer” nada de surtir efeito, surgiam mais estrias e as outras não desapareciam, os anos foram passando e desisti do tratamento, uma vez que eu só gastava dinheiro, desencanei e “é, eu tenho estrias”. Sempre comi bem, o suficiente - a frase que eu mais ouvia “mas essa menina é magra de ruim” - e nesse meio tempo comecei a engordar com uma rapidez incrível, e mais estrias surgiam, procurei um endocrinologista “você tem que se gostar, não pode deixar a comida te dominar, faça exercícios e volte daqui a um mês que quero te ver no mínimo uns 5kg mais magra” Sim, isso é a fala de um profissional para alguém que foi a procura de ajuda porque supostamente não se gosta. Aí começam-se dietas, academia, contar calorias, emagrece um quilo, dois, três, não emagrece mais, engorda, vai pra academia, volta e se irrita com tudo e com todos, procura se ocupar cada vez mais, reclama que tenta emagrecer e não se reconhece mais no espelho, o rosto começa a ficar um balão “mas, Rafa, nunca vi alguém tão complexada com as bochechas quanto tu” e chora e se aceita e a academia começa a ser cansativa demais e academia parece que só faz efeito nas pernas, só as pernas emagrecem, então vamos para o Muay Thai porque afina os braços, hematomas horrendos com qualquer toquezinho começam a surgir e já nem se sabe se foi pelo esporte ou se estão surgindo sozinhos... mais um dermatologista, as mesmas perguntas “você toma alguma medicação com corticóide? ah, não? bom, então vou te recomendar um acido, você é muito sensível” e liga pra mãe “mãe, eu sou muito sensível!!! não existe vitamina, não me pediram exames, não tenho nada, eu tô ficando roxa!” Aí volta pra faculdade, pára de pensar nisso! Existem “maiores” preocupações, afinal, estética é futilidade. Eis que surge uma protuberância no pescoço “pronto, estou ficando corcunda, é muito tempo no computador” procura um ortopedista “é bom fazer exercícios, mantenha-se ereta e se você emagrecer vai ajudar” pronto, eu tenho que emagrecer, tenho a pele sensível e tenho que me controlar “normal, a Rafaella deve ter uma TPM prolongada” e o tempo vai passando e começo a ficar cansada de subir uma escada, e irritada, e cai cabelo e “é stress” procuro mais soluções e vou em outro médico e tomo remédio e não emagreço e “tá, desencana” chegaram as férias, vou viajar. Volto com hematomas “que isso, Rafa? fosse espancada?” Vou procurar um hematologista, um senhor, médico professor da UFSC, conversando e fazendo perguntas, “e o aumento de peso, há quanto tempo? tudo isso em 3 anos? hum... estrias na canela sem ter engordado? hum... giba no pescoço? hum... rosto em formato de lua cheia? hum... e o sono? acorda muito a noite? ah, é? hum... vou te pedir alguns exames e depois conversamos” Na requisição do exame de sangue, pedindo nível de cortisol, um ponto de interrogação: Cushing? Qualquer pessoa convicta de que precisa de respostas sabe fazer uma pesquisa e analisar informações relevantes. Google pra que te quero, na hora, search:
CUSHING: alterações nos níveis de cortisol no organismo e do hormônio ACTH, que podem ser provocadas pelo uso contínuo de corticosteróides ou por um tumor (adrenal - ou hipofisário - ou ectópico = região dos rins – cérebro – alguma outra glândula não responsável pela produção desse hormônio que por ironia do destino começou a produzir) os principais sintomas aparentes são estrias violáceas (avermelhadas, com mais de um cm de espessura que surgem repentinamente mesmo sem ter engordado o suficiente para isso), aumento de peso em pouco tempo, principalmente na região do abdome, rosto com formato arredondado (face de lua cheia), giba (massa atrás do pescoço), mudanças de humor repentino com irritabilidade excessiva, perda de massa muscular nos membros inferiores, pele sem elasticidade; piores complicações: obesidade, diabetes mellitus, osteoporose precoce... (e mais algumas coisas mais assustadoras)
Resultado do exame de sangue: “seu cortisol está alterado” Tomografia do abdome: “negativo” Ressonância: “cistos na pineal”; pronto, mais um apavoro, “agora te encaminho pra um endocrinologista porque é especialidade dele e vão saber te esclarecer melhor... Lágrimas e mais lágrimas e lá fomos nós (eu e minha mãe, minha super companheira) encaminhadas de Florianópolis para São Paulo. Chegando em SP “pare de tomar o anticoncepcional e volte daqui um mês para ser internada e fazer os exames”
As frases mais ouvidas "mas como não diagnosticaram antes?", "você é a caricatura da doença!", "isso é coisa que qualquer quarta fase já tem conhecimento", "você que olhou no google já poderia diagnosticar alguém na rua", "mas como que te perguntavam se usava corticoide e nunca te pediram exame de cortisol?"
"ah, mas é uma doença rara" e daí? mesmo sendo rara já encontrei várias evidências de que não é desconhecida e nem é difícil de diagnosticar, os exames são básicos.
É revoltante saber que uma criatura estudou anos para se formar e ter seu consultório, aí chega numa altura do campeonato diz para seu querido paciente "acho bom você fechar a boquinha que funciona, porque você tem que se gostar". Isso sem ter pedido um exame sequer. Esse tipo de criatura continua sua vidinha tratando as pessoas como número e aumentando o número da sua continha bancária sem aumentar o número do peso na consciência. Caso típico de mediocridade, como diria meu pai.
As coisas que acontecem com o nosso organismo são consequências de inúmeras outras que eu, particularmente, nem imagino; mas se alguém perdeu seu precioso tempo estudando esses processos fisiológicos e atua profissionalmente para esclarecer outras pessoas que não tiveram esse estudo, no mínimo, espera-se que o que foi dado na faculdade seja verificado! Mas não, quase dez médicos só aprenderam a dizer "você é sensível". Agora faço alusão de um trecho de Hamlet "não precisa um fantasma levantar da sepultura para dizer o óbvio"... mas não sei se palavras comoveriam esses médicos por quem eu passei, pra motivá-los a ter um pouquinho mais de convicção no que fazem, principalmente porque lidar com pessoas todos sabemos que não é fácil, é clichê dizer isso, mas somos pessoas e não é fácil nem lidar consigo mesmo. Depois do diagnóstico a vontade é de sair gritando aos quatro ventos os nomes desses médicos, ou , fazer um artigo, mandar uma carta, um pedido de socorro pra outros médicos, alertando para que não se faça descaso de ninguém, diagnósticos são coisas sérias.
Agora sei que tenho cushing e fica a grande questão "tenho estrias e não sou apenas sensível, fechei a boquinha e não emagreci (além de muitas outras coisas) ... e você não me diagnosticou, vai fechar seu consultório?"
A problemática maior dessa investigação da doença, na verdade, é localizar o tumor pra poder fazer a cirurgia... mas isso são cenas do próximo capítulo...